Pegar fogo ao álbum de recortes

Memória, actualidade e biografia parecem precipitar-se sobre si mesmas, na peça, debaixo de labaredas.

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Alipio Padilha
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As Três (Velhas) Irmãs apresenta-se, no subtítulo do espectáculo, como sendo “uma memória de Tchékhov”. Memória de quem? Das personagens, por um lado, e das actrizes, por outro. Graça Lobo, Mariema e Paula Só, cujas biografias foram cruzadas com a ficção, apresentam-se na primeira pessoa, entrando e saindo do papel conforme designado.

Fotos de episódios da vida e carreira das actrizes presidem ao cenário, que inclui ainda vários figurinos e uma longa mesa, mostrando que estamos ao mesmo tempo no teatro e na casa das três irmãs Prozorov. Ao microfone, Martim Pedroso intervém discretamente, contracenando enquanto personagem da peça, ou recordando alguma fala, numa mistura, também ele, de actor, papel, ponto de teatro e entrevistador, simultaneamente.

O espectáculo decorre conforme os humores variáveis das três actrizes, que se colam ao enredo original, fornecendo aos espectadores não uma, mas várias chaves para descodificar o sentido da peça. Esse sentido assenta na experiência de cada uma das actrizes, partilhada com a plateia, fundida com a dramaturgia inicial. É a memória possível da peça de Tchékhov, cuja experiência primordial parece ser impossível de reconstituir. De facto, Três Irmãs há muitas, algumas bastante velhas, e esta tem como virtude apropriar-se da vida de pessoas reais, com o seu quê de fictícias, para nos contar, com renovada força, a história original.

Esta fusão de elementos biográficos e dramáticos, por um lado, e da forma dramática com a forma da entrevista, por outro, faz uma espécie de curto-circuito entre a peça e a realidade. A peça de teatro é a realidade. Graça Lobo é uma autêntica incendiária, com as suas anedotas de poetas, plebeias e aristocratas. Mariema faz-nos sentir, em primeira mão, a nobreza de porte do que seria o teatro nacional de outrora. Paula Só mostra, num dos melhores retratos dos tempos que correm, a fragilidade de tudo.

É como se as chamas do incêndio do terceiro ato da peça estivessem realmente a lavrar pelas paredes do Nacional. O que arde? Por coincidência, no teatro estava em exposição uma série de textos, documentos e objectos sobre o grande incêndio de 1964 e, na sala Garrett, estava em cena uma outra peça (Pirandello, da Mala Voadora), que usava os nomes próprios dos actores como nome próprio das personagens.

Memória, actualidade e biografia parecem precipitar-se sobre si mesmas, na peça, debaixo de labaredas. A memória é a nossa, dos espectadores, pelo menos dos que se interessam, dos que irão ainda hoje ao teatro. Não se trata apenas da memória da peça de Tchékhov, mas dos recortes do século XX português, incluindo nela o teatro como lugar especial, álbum de fotografias dos vários países que há no nosso. Talvez desfolhar o álbum seja recordar e viver, como diz a canção. Trocar as fotos de ordem, recortá-las e colá-las umas em cima das outras, ainda mais.

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