Pardal Monteiro: o primeiro moderno em Lisboa

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Nem damos por isso, mas muitas das construções mais monumentais de Lisboa - do Instituto Superior Técnico à Biblioteca Nacional, passando pelo Hotel Ritz - têm a mesma assinatura: Pardal Monteiro. Ana Tostões conta, numa biografia, a história do arquitecto que, durante o Estado Novo, modernizou a cidade

Instituto Superior Técnico, Faculdade de Letras de Lisboa, Biblioteca Nacional, Instituto Nacional de Estatística, gare marítima da Rocha Conde de "bidos, gare marítima de Alcântara, Igreja de Nossa Senhora de Fátima, edifício do Diário de Notícias, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Hotel Tivoli, Hotel Ritz. Arquitecto: Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957). 

A enumeração não é, certamente, a melhor forma de começar um texto. Mas neste caso justifica-se: corresponde à sensação de surpresa e de esmagamento que temos quando folheamos a fotobiografia de Pardal Monteiro escrita por Ana Tostões e publicada na colecção "Fotobiografias Século XX", dirigida por Joaquim Vieira para o Círculo de Leitores (naquela que é, nesta série, a primeira biografia de um arquitecto). As imagens dos edifícios familiares sucedem-se página após página, e a pergunta é inevitável: também fez este?

"O cidadão normal passa por todas estas obras de Pardal Monteiro e não tem ideia de que foi tudo feito pelo mesmo homem", diz Ana Tostões. "E estamos a falar de obras que não são comuns, são grandes equipamentos. É ele, sem dúvida, que faz as obras mais importantes de Lisboa entre os anos 20 e os anos 50". E é, sobretudo, "o primeiro moderno em Lisboa, juntamente com Carlos Ramos".

São, todas elas, obras do Estado Novo. Ana Tostões chama-lhes no livro "os equipamentos mais monumentalmente vitais do Estado Novo" e, portanto, "a imagem visível do regime quando, na primeira fase de afirmação política, interessava inovar e dar sinal de diferença, competência e eficiência." Por tudo isso, o nome de Pardal Monteiro está sempre inevitavelmente ligado ao do ministro das Obras Públicas de Salazar, Duarte Pacheco.

"Ter estas grandes encomendas foi uma sorte, um destino", explica Ana Tostões. "Ele cruza-se com Duarte Pacheco na altura em que este está a encomendar os grandes equipamentos para o país e sobretudo para a cidade de Lisboa". E assim, o jovem Pardal Monteiro, filho de um canteiro de Pêro Pinheiro, Sintra (a empresa familiar ganhou fama com os trabalhos de cantaria) e formado em Arquitectura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, viu, aos 30 anos, ser-lhe confiado o ambicioso projecto de construção do Instituto Superior Técnico.

Foi uma enorme prova de confiança. "Duarte Pacheco também era jovem, tinha mais dois anos do que Pardal Monteiro", lembra Ana Tostões. "E se confiava em si próprio também podia confiar num jovem arquitecto. Havia, como noutros países da Europa na altura, nomeadamente a Itália fascista, uma vontade política de marcar o país com infra-estruturas e edifícios que assinalassem uma nova época. Duarte Pacheco precisava de uma nova linguagem."

Novo mundo

Pardal Monteiro deu-lhe isso. Mas antes manifestou algum incómodo perante este "ajuste directo" da encomenda e sugeriu ao ministro que se realizasse um concurso público, no qual também participaria. A reacção surge no livro nas próprias palavras de Pardal Monteiro (Ana Tostões teve acesso às memórias que o arquitecto escreveu no final da vida, uma das bases deste livro). "Pacheco mal me deu tempo para falar porque imediatamente me interrompeu dizendo: 'Tenho a seu respeito boas informações dadas por pessoas que me merecem a maior confiança. Você é o arquitecto que eu e o Conselho escolhemos. Portanto só tenho um caminho a seguir: entregar-lhe o projecto para o Instituto ou confiar este trabalho a um arquitecto estrangeiro, portanto escolha."

Pardal Monteiro avançou para a obra - um programa ambicioso e um orçamento curto (10 500 contos distribuídos por três anos), num terreno irregular e acidentado. "A vastidão do programa era praticamente incompatível com aquela verba", escreveria mais tarde. A solução que propôs foi a de evitar uma construção única e enorme, fragmentar o instituto em vários blocos, o que lhe permitira também crescer quando houvesse vontade (e dinheiro) para isso.

Pardal conhecia bem a arquitectura que se estava a fazer no estrangeiro. "Tinha uma grande ambição como arquitecto e ela leva-o a viajar, esclarecer-se, informar-se e criar uma rede internacional." O Técnico permitia-lhe pôr em prática essa linguagem moderna, que se justificava até pelas limitações orçamentais, que lhe permitiram, nas suas palavras, "abandonar corajosamente qualquer preocupação de formalismo clássico e académico", de decoração de fachadas.

"Ele está a criar uma linguagem própria a partir de outro modo de construir, com betão e de uma maneira muito mais económica." A Lisboa da época dividiu-se. O Técnico é "a primeira obra moderna com impacto na cidade". Sinal disso é a cena do filme "Maria Papoila", de Leitão de Barros, em que a ingénua provinciana que chega a Lisboa para servir, de repente se descobre na parte nova da cidade, na escadaria do Técnico. "Não é por acaso que o IST é escolhido como símbolo de um outro mundo, do novo."

Duarte Pacheco apoiou sempre as opções do arquitecto (a ruptura entre os dois só aconteceria mais tarde por motivos não inteiramente esclarecidos). Mas a verdadeira polémica pública surgiria com outra obra: a Igreja de Nossa Senhora de Fátima. Se os lisboetas aceitavam que a linguagem moderna pudesse ser usada numa escola para engenheiros, outra coisa totalmente diferente era usá-la numa igreja. Mas aí Pardal Monteiro contou com o mais inesperado dos apoios: o do cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa.

Enquanto os sectores mais conservadores entre os arquitectos consideravam, como escreveu Tomás Ribeiro Colaço na "Arquitectura Portuguesa" que "a Igreja Nova é muito feia", o cardeal Cerejeira ripostava: "Quanto a ser moderna, não compreendemos sequer que pudesse ser outra coisa. Todas as formas artísticas do passado foram modernas em relação ao seu tempo."

Pardal, Almada e Duarte Pacheco

Para os vitrais, Pardal Monteiro convidou o artista que foi sempre o seu maior colaborador, Almada Negreiros, mas na igreja intervieram vários outros artistas, dos escultores Francisco Franco e Leopoldo de Almeida, a pintores como Henrique Franco e Lino António. O mesmo Almada fez as pinturas murais das duas gares, a da Rocha do Conde de "bidos e a de Alcântara, os frescos no edifício do Diário de Notícias, as tapeçarias do Hotel Ritz ("um novo conceito de hotel de luxo introduzido em Portugal pela mão de Pardal Monteiro"), e os desenhos nas fachadas da Cidade Universitária.

Pardal Monteiro e Almada - que desenhou o amigo, com um longo nariz e os óculos redondos, num retrato dedicado "Ao arquitecto Pardal Monteiro que me fez vitralista e fresquista e amigo" - estavam ligados "por uma ideia de excelência", acredita Ana Tostões. "O melhor arquitecto e o melhor pintor - Pardal Monteiro encontrava em Almada um artista à altura da sua modernidade -, e o melhor político, Duarte Pacheco".

Mas com o ministro a relação não sobreviveria e no final da década de 30 deu-se a ruptura. Os motivos não estão esclarecidos. A autora cita o livro de João Vieira Caldas sobre Pardal Monteiro para recordar "o que se dizia à boca fechada": que Duarte Pacheco costumava "comentar os desenhos que lhe eram apresentados riscando-os com o lápis, hábito que irritava profundamente Pardal Monteiro".

Quando lhe mostrou os desenhos para o arranjo do Terreiro do Paço Ducal em Vila Viçosa, o arquitecto resolveu apresentá-los cobertos por um vidro que impedia os tão odiados traços. "Duarte Pacheco não disse nada na altura, nem voltaria a falar no assunto, mas a sua relação com Pardal Monteiro esfriou completamente e não voltou a chamá-lo para qualquer tipo de trabalho ou de conselho.", conta Vieira Caldas.

Ana Tostões admite, contudo, que possa ter sido outra a causa da zanga. "Julgo que possa ter a ver com o processo das gares marítimas. É a obra em que Pardal Monteiro se empenha mais, e eram inicialmente uma coisa monumental. Vinham de Alcântara à Rocha, as duas gares eram ligadas por uma galeria coberta por um terraço de betão armado, havia um enorme farol que era a entrada da barra". O projecto foi substancialmente reduzido e perdeu muito do seu impacto. "Pardal Monteiro ficou muito incomodado com isso e deve ter reagido".

Segue-se um período difícil. Com um atelier profissional montado e com pouco trabalho, Pardal dedica-se sobretudo a fazer habitação, prédios de rendimento. Em Março de 1940 lança, por carta, um apelo desesperado a Salazar: "Condenado ao suicídio profissional, último e inesperado passo da carreira que tanto me apaixonou, apelo para V.Exª como última esperança de salvação." Mas será só depois da morte de Duarte Pacheco, num acidente de viação em 1943, e terminada a II Guerra, que consegue recuperar - é aí que surgem o LNEC, a Biblioteca Nacional, a Cidade Universitária, o Ritz.

A Biblioteca Nacional será o seu último grande projecto, iniciado em 1954, mas já terminado pelo sobrinho António Pardal Monteiro, doze anos após a morte do tio. Em Setembro de 1956 sofre um acidente vascular cerebral, e em Novembro outro. É na cama, durante a doença, que dita à mulher (entre Outubro e Novembro de 56) as memórias que servem de base ao trabalho de Ana Tostões neste livro.

Incapaz de suportar a invalidez, desesperado com a situação em que se encontra, mergulha numa profunda depressão. A 12 de Janeiro de 57, pouco antes de cumprir 60 anos, escreve, com dificuldade (os médicos tinham-lhe aconselhado a fazer testes de caligrafia como terapia): "Percalços vários atiraram comigo para uma depressão moral que me tirou o ânimo para tudo. Não posso porém estar nesta apatia que me embrutece."

Em Dezembro do mesmo ano, no dia 16, toma um frasco de barbitúricos e põe termo à vida. "Não suportou ser visto como uma pessoa deficiente, com incapacidade, matou-se com 60 anos. O projecto final foi o do suicídio", diz Ana Tostões. Ficou a obra - ligada ao Estado Novo, sim, "mas com uma linguagem tão seca, tão dura, que resiste ao tempo, uma modernidade com um sentido clássico, feita para durar."

 

Igreja de Fátima
1933

A Igreja de Nossa Senhora de Fátima dividiu opiniões. Sectores mais conservadores entre os católicos consideraram-na "feia", mas o cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, defendeu a sua modernidade

LNEC
1949

O Laboratório Nacional de Engenharia Civil é feito já na última fase de trabalho de Pardal Monteiro, que Ana Tostões descreve como "prodigiosa", com "um conjunto excepcional de projectos" feito em apenas dez anos (entre os quais a Biblioteca Nacional, a Cidade Universitária e o Hotel Ritz)

INE
1931

O edifíco do Instituto Nacional de Estatística, junto ao Instituto Superior Técnico,  é a  primeira grande  obra pública que Pardal Monteiro inaugura em Lisboa  

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