Para lá da linha inimiga

Mount Ananea (5853), a instalação que Salomé Lamas tem em Serralves, é o princípio de uma longa-metragem por vir. A segunda da autora de Terra de Ninguém, agora a filmar em La Rinconada, uma das piores cidades do mundo

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Enquanto estas palavras são escritas e lidas, Salomé Lamas está incontactável a mais de cinco mil metros de altitude. Está em La Rinconada, nos Andes peruanos. La Rinconada, que é não só a cidade mais alta do mundo como também uma das piores, se não a pior. Uma espécie de inferno glaciar ao qual se ascende primeiro, antes de descer.

É o ciclo da vida, por ali: subir primeiro para depois baixar. Subir à cordilheira conhecida como Ananea Grande e viver lá em cima quase sem oxigénio para diariamente baixar à barriga dantesca que os devora a todos: a mina de ouro da Corporação Ananea, que junta mais de 400 empresas de exploração.  

Estamos a falar de cerca de 50 mil pessoas rodeadas pelo seu próprio lixo a resistirem a uma temperatura média anual de pouco mais de um grau centígrado numa cidade que não passa de favela, sem saneamento básico, aquecimento, policiamento ou verdadeiro apoio médico. E com 30 dias mensais de trabalho não remunerado.

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Chama-se cachorreo: não há salário, mas ao 31.º dia os trabalhadores podem levar todo o minério que conseguirem carregar sobre os ombros. Que a carga contenha ou não ouro é uma questão de sorte...
O sonho mirífico alimenta tudo e todos, mas o que realmente se impõe é a lei do mais forte. E o mais forte é sempre o mercúrio, que até há dois anos continuava a ser utilizado nos processos de mineração e poluiu tudo em volta. Por exemplo a água, que todos bebem.

Não devia ser preciso mais para imaginar La Rinconada como o pesadelo dantesco de onde todos querem fugir, mas não. A febre do ouro fala mais alto. E apanhou também Salomé Lamas, agora a rodar lá a sua segunda longa-metragem, depois de Terra de Ninguém (2012).

Em Fevereiro, quando apresentou o projecto na secção Berlinale Talents, do Docstation, do Festival de Cinema de Berlim – para projectos a desenvolver futuramente –, a realizadora descreveu esse filme por vir como um documentário-ficção que narra 24 horas na vida de Mamani, um mineiro a trabalhar nesse sistema de cachorreo originalmente imposto pela corte espanhola aos povos andinos.

A pequena sinopse citava O Jogador, de Dostoiévski: “Não: amanhã tudo estará terminado!”

É o contrário, claro. Quer dizer que a roleta continuará a rodar. Como na coreografia de Mount Ananea (5853), a instalação que esta semana veio completar a mostra com que Salomé Lamas inaugurou a Sala de Projectos do Museu de Serralves – uma nova sala, de entrada gratuita e com programação do director adjunto do museu, João Ribas.

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Terra da imaginação
Mount Ananea (5853) são 20 minutos de negro denso por entre o qual, pontualmente, entrevemos uma cadeia de figuras humanas em perpétua circulação por uma encosta. Um plano fixo e silencioso filmado em La Compuerta, uma garganta-chave de acesso às minas que diariamente é calcorreada por milhares de pessoas.

O filme é isso, uma espécie de assombração plácida, sem pathos aparente, feita apenas de fluir. Depois há a paisagem sonora que a artista construiu com Bruno Moreira, Norberto Lobo e João Lobo, inspirados numa mancha ecléctica de inspirações sonoras e musicais (entre as quais do folclore andino).

“Para sentir o sublime, essa coisa avassaladora, é preciso sensibilidade, ter um corpo, ser humano e finito”, dizia a realizadora a propósito de Encounters with Landscape (3x), o tríptico com que há quatro anos ganhou o Prémio Fnac Novo Talento do festival IndieLisboa.
Nesses filmes, Salomé Lamas testava os limites físicos do corpo e da sua integração na paisagem. Explorando um território ambíguo entre o cinema, a videoarte e a performance, e partindo de situações muito simples, usava o corpo – o próprio – como medida da vida.

No primeiro quadro, subia a uma árvore para se deixar cair sobre uma lagoa. No segundo, ao anoitecer, percorria a pé uma linha horizontal na encosta de uma montanha, acabando por resvalar e ser engolida pela escuridão. O último quadro era o mais misterioso: um fragmento filmado no interior de uma gruta, como uma alegoria suspensa na frase “to be continued”.      

Houve uma continuação, de facto: desde então, a obra de Salomé Lamas não deixou de explorar limites – por exemplo, os limites do documentário. Mas também os limites da própria realidade. Na Europa de Leste como nos Andes peruanos.     

“Não tenho uma relação fácil com as fronteiras. Assustam-me e enervam-me”, diz a realizadora. “As fronteiras são linhas laterais burocráticas, autoritárias e inimigas. A sua existência é criticada de forma rotineira por geógrafos académicos que as retratam como actos hostis de exclusão; e ainda assim, num mundo sem fronteiras, para onde poderíamos escapar? Onde é que interessaria ir?”

Para Salomé Lamas, “a terra de ninguém é a terra natural da imaginação”: “É nesse não-lugar que nos armamos para resistir ao silêncio sem mácula do universo que extravasa as nossas próprias figurações, a fim de não sucumbirmos ao pânico puro, à ameaça da dissolução. Silêncio dos abismos que nos é estranho mas ao qual também pertencemos, nessa parte de nós abandonada às possibilidades puras, às obsessões insubmissas a qualquer forma, à inércia do medo, de que nos protegemos falsamente pela convenção.”

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