Os massacres da Noruega aconteceram na Politécnica

Ir ao Teatro da Politécnica ver esta produção dos Artistas Unidos é um acto político ?que reverbera noutro acto político

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Jorge Gonçalves

Os acontecimentos deste espectáculo não se resumem ao título e ao tema — um massacre feito por um atirador solitário, num centro comunitário onde ensaiava um coro composto por cidadãos das mais variadas origens. O texto foi escrito em reacção aos atentados na Noruega cometidos por Andreas Breivik, e tenta dialogar com esses factos sem os suprimir ou resolver cabalmente.

Seria isso possível, ou desejável? A peça tem a forma de uma sequência de acontecimentos cujo significado último — se existe — cabe ao espectador construir. A única questão importante é saber o que fazer com o que aconteceu, diz às tantas o actor que encarna o rapaz, assassino (João Pedro Mamede). Claire, a outra personagem em foco, a sobrevivente (Andreia Bento), corre esses factos em busca de uma explicação para o massacre. E essa busca de significado ecoa a tarefa do próprio dramaturgo, também ele fazendo uma tentativa de compreender como no coração da social-democracia escandinava (mas podia ser outra) se incuba o terror.

Esta estreia é em si um acontecimento, tal como é a publicação das últimas peças de Greig. Ir ao Teatro da Politécnica ver esta produção dos Artistas Unidos é um acto político que reverbera noutro acto político. Os Artistas Unidos já tinham montado A 20 de Novembro, de Lars Norén, motivada pela mesma chacina.

Uma e outra fazem parte de um teatro, uma cidade, outras, um país. Se havia dúvidas sobre a função da dramaturgia, está aqui: não apenas um espelho da sociedade, mas um martelo para moldá-la, como disse Brecht. Não pelo discurso, mas pela forma. Para terminar esta generalização da ideia de acontecimento à peça como um todo, falta o principal. É o que acontece em cena que é relevante, não apenas narrativa ou dramaticamente, mas no corpo dos actores, de cada um e de todos, sentido pelos espectadores. Os gestos, movimentos, olhares, frases, esgares, tudo é irreversível e irredutível, constituindo um conjunto de pequenos actos que, somados, dão lugar à obra e experiência teatral. 

Andreia Bento e João Pedro Mamede reconstituem as cenas em redor do massacre entrando e saindo das várias situações com fluidez e fantasia. O actor tem de mudar de pele várias vezes, já que faz inúmeras personagens. Mas a actriz tem de imaginar que o rapaz é uma e outra figura. Ambos são concretos nesse jogo de cena.

Os Acontecimentos expõe o tema por vezes de forma directa, misturando ficção com comentário, diálogo dramático com interpelação da plateia, e acção teatral com coro musical. Face à complexidade do texto, com cenas encadeadas umas nas outras, ao arrepio das fórmulas mais convencionais, e figuras e personagens feitas pelos mesmos actores num piscar de olhos, a encenação e a cenografia dispõem a cena com cuidado e simplicidade, para  fazer os actores brilhar. 

A irracionalidade do assassino — ou, pior ainda, a sua racionalidade tortuosa — contrasta com o código divino da música coral, atenuando a angústia e aumentando a esperança. A música torna a vida suportável, para usar outro lugar-comum. A arte teatral mostra o que ela tem de insuportável.

 

Correcção : onde estava "para não fazer os actores brilhar" passou a estar "para fazer os actores brilhar"

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