O ritual e a peregrinação segundo Miguel Moreira

Possível peça final para o ciclo iniciado com The Old King, Pântano evoca os lugares sombrios ou misteriosos que cada um prefere habitualmente deixar trancados longe da luz do dia. Uma questão de romantismo noir, acredita Miguel Moreira.

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Na obra de Miguel Moreira para o Útero, a beleza convive com a ruína desde há muito. Não são forças contrárias, não se anulam, cresceram juntas como irmãs enquanto a companhia habitava no Espaço Ginjal, com o rio a servir de fosso que a mantinha na periferia. Esse antigo armazém convertido em sala de espectáculos e partilhado com outras estruturas foi-se deteriorando com os anos e sendo cada vez mais ruína. “E quanto mais chovia lá dentro, mais parecia que ficava melhor”, comenta Miguel Moreira. “Melhor para nós e para o público.” A humidade e a temperatura de gelar quaisquer 206 ossos, a dificuldade em suportar a aspereza do espaço, tudo isso foi contribuindo para que as obras surgissem, afinal, “de uma forma progressivamente mais urgente”. Até que o Espaço Ginjal fechou, em 2010, e pouco depois Moreira criava com o bailarino Romeu Runa The Old King, peça para um homem abandonado por Deus e em combate com os seus pensamentos numa tentativa de encontrar maneira de se relacionar com a sociedade.

Com The Old King, Miguel Moreira e o Útero davam o salto para as grandes salas. “Mas acho que nunca deixámos de estar no Ginjal, naquele ambiente e naquele sítio de procura utópica de um sítio que sabemos que não vamos conseguir alcançar mas que achamos que é nosso”, defende. Porque se havia uma condição geográfica no Ginjal, de periferia e de marginalidade em relação ao centro, havia também uma inquietação e uma busca sôfrega por uma arte guiada, em primeiro lugar, pela parca identificação com aquilo que o centro propunha. “Aos 16 ou 17 anos fui então à procura dos artistas e da arte com que me pudesse identificar”, recorda. “Ao estar no subúrbio, sem dúvida que sempre senti essa ausência de alguma coisa, esse lado marginal nos grupos que existiam. E nunca me irei afastar disso porque sei que esse sítio de marginalidade e do culto é um sítio onde quero estar, um sítio onde me sinto bem.” Pense-se novamente no Ginjal, nesse espaço desafiador, de condições duras, mas virado para uma paisagem belíssima. Ruína e beleza.

“Espaços-limite, neutros, onde as normas e os preceitos se diluem na fronteira entre a vida civilizada e o mundo selvagem…”, cita Miguel Moreira do prefácio de Ernesto Sampaio para Cais Oeste, texto do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste vive precisamente dessa cisão entre dois mundos, um oásis longínquo de civilização e um pequeno universo selvagem e sujo, separados por um rio; vive do querer chegar ao outro lado mas estar irremediavelmente preso neste. Para Moreira, que enquanto actor fez Na Solidão dos Campos de Algodão dirigido por Rogério de Carvalho, “Koltès tem uma constante preocupação existencial com o submundo – quer viver nos sítios onde normalmente os outros dizem que não querem viver e escreve sobre isso”, uma ideia de submundo com a qual confessa ter “uma identificação imensa”.

O empurrão de Sade
Pântano, peça que Miguel Moreira estreia hoje na Culturgest, em Lisboa (e que segue depois para Porto, Castelo Branco, Coimbra e Paris), anuncia-se como possível capítulo final para um ciclo iniciado em 2011 com The Old King. Romeu Runa volta ao Útero e, ao lado de Francisco Camacho e Catarina Félix, contribui para mais uma imersão num cenário de desconforto. De início, quase uma imobilidade dos três, depois uma procura lasciva e sacrificial entre os corpos, aludindo a uma imagem de ritualização e de peregrinação que Moreira quis trabalhar. Há olhos cerrados, seres despojados pelo chão, vislumbres recolhidos nas artes plásticas, mas também movimentos animalescos ou uma sexualidade a latejar pedidos de empréstimo a Sade – “podia passar a vida toda a falar de Sade, Pasolini ou Beckett”, confessa Miguel Moreira. Mas foi “a exposição ao mesmo tempo provocatória, chocante e bela” sobre Sade no parisiense Musée d’Orsay que se assumiu como peça fundamental para pôr os bailarinos em palco a “vomitar lugares ou sensações que queremos esconder”.

Não se trata de uma regurgitação literal, mas antes de “uma certa evocação de lugares sombrios ou misteriosos que existem dentro de nós”. Ecos de um romantismo noir, como o define Miguel Moreira, ele que se diz espantado por o público continuar a falar-lhe em dureza nas suas peças. Quer apenas destapar e aceder a esses sítios obscuros, e não cair na provocação. “Não sinto que os bailarinos estejam a sofrer”, responde. “Acho é que hoje não estamos muito habituados a viver rituais. Só os mais comuns, ir à igreja, a um casamento, um baptizado ou funeral, mas é uma sociedade muito mais ligada ao prazer imediato e isso é contrário a este lugar onde as coisas têm de ter um caminho para chegarem a algum lado.” A evocação da peregrinação, refere, vem daí, desse trajecto solitário com vista a um destino final.

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E se o público acusa o desconforto desta tentativa de “dar respostas ao mundo, de uma forma livre e abstracta”, Miguel Moreira confessa que frequentemente fica tão surpreendido quanto qualquer espectador. “Acontece acabar um espectáculo e estar tão atingido emocionalmente e tão desconfortável como eles”, admite. Até por isso, suspeita que Pântano possa encerrar o ciclo iniciado em The Old King com a leitura de Ideia da Paisagem, obra de Ana Francisca Azevedo. “Primeiro há uma fase de espanto com o material que estamos a produzir em conjunto e depois, não sei porquê, começa a haver uma necessidade de mapear ou ter alguma organização emocional interna daquilo que estamos a fazer. Nesse aspecto, não o digo com certeza absoluta, mas sinto isto como chegar a um porto.”

Este ciclo é em grande parte estimulado pela exploração mais aprofundada de questões técnicas como a utilização da luz e da música (banda sonora de Carlos Zíngaro e projecto Shhh), ou a duração do espectáculo, numa lógica de partilha grupal que Miguel Moreira compara a ter uma banda de rock. O importante, na reivindicação de um espaço que sabe ser habitado por outros artistas, é saber que esta é uma linguagem construída em conjunto e para estarem juntos. Mesmo sabendo que a outra margem, que se vê lá adiante, será sempre inalcançável. Não há, na verdade, tentativa nem esforço de chegar até lá.

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