"O real é o sítio onde estou, o imaginário é o sítio ao lado"

Cineastas e programadores juntaram-se no Forum do Real do Porto/Post/Doc para discutir como se pode Documentar o imaginário.

Foto
André Príncipe, cineasta, fotógrafo e editor, participou o debate Miguel Manso

Quase parecia que muitos dos convidados dos painéis do Forum do Real, organizado pelo Porto/Post/Doc no Café-Concerto do Rivoli durante o dia de sexta-feira, tinham acertado agendas, mas na verdade nada disso: aconteceu apenas que as conversas organizadas à volta do tema escolhido este ano pela organização do novo festival dedicado às novas direcções que o documentário está a levar - Documentar o imaginário -  foram dar ao mesmo sítio. A saber: a dificuldade em definir a própria identidade do que é um documentário, e a necessidade de encontrar espaços de divulgação que o abram a um público maior, transcendendo as limitações de um circuito mais fechado do que seria ideal.

Na primeira mesa de sexta-feira, moderada pelo académico e programador Daniel Ribas e reunindo os programadores António Pinto Ribeiro e João Ribas (Fundação Serralves) e os cineastas Catarina Mourão (A Toca do Lobo) e André Príncipe (Campo de Flamingos sem Flamingos), falou-se mais especificamente de Portugal e da sua produção documental. Uma produção que, para Pinto Ribeiro, está aquém do que seria desejável em termos de quantidade e, inclusive, em termos de temas escolhidos. O ex-programador da Culturgest fez notar como "o documentário português nos últimos 20 anos tem uma enorme falha": a ausência de uma abordagem regular à  história política do país.

"Temos um problema de memória," disse Pinto Ribeiro. "Foram precisos 40 anos para começarmos a falar dos retornados porque há uma grande dificuldade em lidar com a memória. Existe uma grande amnésia colectiva." O programador apontou igualmente a ausência de cultura visual numa sociedade que saltou directamente do regime do Estado Novo e de uma cultura maioritariamente transmitida pela palavra escrita para "a condição de telespectador". É um problema transversal à sociedade que define como "complicadíssimo de resolver" e que passa também pela sensação de "tribalismo" em volta dos festivais de cinema que hoje proliferam, criando um efeito perverso de "exclusão" - problema que não se limita ao documentário mas que atravessa todo o próprio "estado da arte".

João Ribas recolocou a questão da cultura visual no espaço audiovisual do mundo contemporâneo, onde vivemos literalmente rodeados de imagens, muitas das quais supostamente tiradas da realidade - redes sociais, televisão, telemóveis. Mas sublinhou também como o fluxo constante de imagens que supostamente representam um acontecimento abrem toda uma série de implicações éticas e estéticas, ameaçando o que o programador de Serralves chama de "a vida pública da imaginação".

Catarina Mourão fez notar - ecoando o que o programador Dennis Lim diria algumas horas depois... - como a proliferação de imagens hoje em dia parece criar uma "descrença ou uma suspeição da sua veracidade", tornando as fronteiras entre o que é "documental" e o que é "ficcional" num "território incómodo".

Documentar o imaginário, então, implicaria deixar para trás aquilo que o programador Paolo Moretti definiria mais tarde provocadoramente como "um conjunto de certezas morais ingénuas" sobre a verdade para abraçar, nas palavras da realizadora, o "filme-ensaio", mais pessoal, como aquele que melhor permite debater essa alteração de paradigma na representação do mundo que nos rodeia. 

O que é programar?

André Príncipe, para além de cineasta igualmente fotógrafo e editor, levou mais longe essa relativização apontando que o "real é o sítio onde estou e o imaginário é o sítio mesmo ao lado". Ou seja, exemplificando, "para quem vive na Foz o real é a Foz e o imaginário a Pasteleira, para quem vive na Pasteleira o real é a Pasteleira e o imaginário a Foz". Mas não deixou igualmente de apontar que nem sempre um cineasta sabe exactamente o que está a fazer quando filma o mundo que o rodeia. Príncipe falou de uma pulsão de registar algo que só muito mais tarde, num outro contexto, fará todo o seu sentido.

Essa ideia do tempo como factor decisivo na identidade do documentário foi central ao segundo dos três painéis, aberto a programadores de festivais e moderado pelo crítico espanhol Victor Paz, onde estiveram Dennis Lim (Lincoln Film Center de Nova Iorque), Jean-François Rettig (Les Rencontres Internationales de Paris), Jean-Pierre Rehm (FIDMarseille) e Paolo Moretti (La Roche sur Yon). Se António Pinto Ribeiro falara da "urgência" que o documentário devolve ao espectador, Jean-Pierre Rehm falará da aposta em filmes que são feitos para ficar e não para serem consumidos e descartados rapidamente.

Já a questão das "comunidades imaginárias" que os festivais criam à sua volta foi quase unanimemente considerada pelos programadores como secundária, visto que, no momento de programar ou organizar um festival, o público "não existe", como disse Jean-Pierre Rehm: "Não sei quem é o público e se soubesse creio que seria alguém de muito perigoso! Comparo-me a um cozinheiro que prepara uma receita para um restaurante. Preocupo-me com a comida e com a aparência do prato, mas não sei quem vai vir ao restaurante nessa noite e por isso não posso cozinhar a pensar nessas pessoas."

Para Paolo Moretti, programar é essencialmente um dever - o dever de "revelar aquilo que ainda não vimos" e de possibilitar a existência da "liberdade extrema e quase sem limites" do cinema que se faz hoje em dia. Dennis Lim define a programação como "a criação de um contexto que permita conversar sobre a direcção que as coisas estão a tomar", resistindo à visão dominante nos EUA do documentário como puramente funcional, orientado para questões fulcrais do nosso tempo filmadas numa linguagem estandardizada. Para o crítico americano, trata-se sobretudo de "fazer a conversa andar para a frente", criar novos espaços de diálogo e reflexão, como aquele que - nas suas palavras - o programa ambicioso e atento da segunda edição do Porto/Post/Doc procurou: transcender a dimensão de mero evento social para se tornar numa rede de cumplicidades e diálogos entre os próprios filmes e a partir daí com um público também ele em processo de descoberta.

O Forum do Real terminou com um terceiro painel sobre as cumplicidades dos imaginários da Galiza e de Portugal, com a presença dos cineastas Lois Patiño e Rodrigo Areias, da produtora Belí Martínez e do programador Nuno Rodrigues. 

Sugerir correcção
Comentar