O mundo extraterrestre de Paiva e Gusmão

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Nas obras de João Maia Gusmão e Pedro Paiva, inesperadas, insolentes, divertidas e profundas, as leis do universo humano cessam de ser úteis. Eis "Breve História da Lentidão e da Vertigem"

João Maria Gusmão (Lisboa, 1979) e Pedro Paiva (Lisboa, 1977) conheceram-se na Faculdade de Belas Artes em Lisboa onde ambos estudaram pintura e começaram a expor conjuntamente em 2001. Em 2005 ganharam o Prémio EDP Novos Artistas e tornaram-se num fenómeno de popularidade, reconhecimento e interesse. Foram convidados para a Bienal de São Paulo, estiveram na Manifesta e em 2009 foram os representantes oficiais de Portugal na 53ª Bienal de Veneza. Já este ano a londrina Tate Modern (um dos museus mais importantes do mundo) adquiriu para a sua colecção um conjunto de treze filmes da dupla, escolha feita com a ambição de ser uma amostra coerente do conjunto da totalidade da obra de Paiva e Gusmão.

Sempre ligados à Galeria Zé dos Bois e mais tarde à galeria Graça Brandão, fizeram exposições muito relevantes para a construção do que se pode chamar "cena da arte portuguesa contemporânea": os seus "Eflúvios Magnéticos" (2006) e a "Abissologia" (2008) inauguraram novas modalidades estéticas e introduziram novos vocábulos no discurso artístico português. São jovens e o trabalho que desenvolvem é uma novidade, não por ser recente, mas por constituir uma abordagem inesperada e fértil aos processos criativos e por as suas obras serem inesperadas, insolentes, divertidas e profundas.

Se o seu trabalho tem boa recepção crítica, coleccionadores e uma circulação internacional pouco comum para artistas portugueses, isso não se deve a operações de relações públicas: recusam a mediatização pessoal, porque só o trabalho é público. Acompanharam o Ípsilon na visita à sua mais recente exposição em Lisboa, mas não se deixam citar ou fotografar: as imagens que importam são as das obras e as palavras são as dos ensaios que escrevem.

As coisas com rabo de peixe

Gusmão e Paiva criam coisas que no seu conjunto constroem uma dimensão (fluida, vaga e inconstante) na qual as leis do universo humano cessam de ser úteis: passam a corresponder a simples artifícios retóricos, palavras ocas sem sentido ou significado.

Se à primeira vista os seus filmes, fotografias e esculturas são simples peças humorísticas (criam situações insólitas que provocam riso: mesmo tratando-se de um riso cínico que assinala um território de compreensão), depois percebe-se tratar-se de peças pertencentes a um mais vasto mecanismo de criação de imagens. Não é uma máquina reprodutiva a qual torna visível o mundo, mas a criação da visibilidade, a qual surge no trabalho destes artistas como lugar de decepção.

A exposição recentemente inaugurada, "Breve História da Lentidão e da Vertigem", tem como mote uma história acerca das coisas que terminam em rabo de peixe: "conta-se que [...] os marinheiros podiam ver e ouvir nas marés perigosas, imaginando o que lhes faltava, Vénus despidas declinadas nas rochas, sorrindo e suspirando canções hipnóticas [...] conta-se ainda que os marinheiros inebriados imaginando a genitália da ilha dos amores [...] se atiravam ao mar descobrindo tarde demais ser difícil a cópula com ais fêmeas, porque afinal tinham escamas." (texto da exposição)

A história aprendida de Horácio é constituída por diferentes camadas, não se trata só da sereia ou da ebriedade dos marinheiros, mas de uma metáfora potente acerca da visão dos homens. A qual é lugar de engano e decepção: julga-se que as imagens dizem as coisas tal-qual elas são, mas depois descobre-se terem rabo de peixe.

Este acontecimento assinala a existência de uma zona de indecisão e intervalo na qual é possível assistir-se à criação de figuras, fantasmas e fábulas. Esse intervalo expressa o que está entre as coisas e as imagens que os homens fazem delas e é para esse lugar que confluem todas as aparições e alucinações. Não existe qualquer tipo de lamento face a esta tragédia do olhar humano porque é: "inevitável que existem problemas sem solução" (ibidem).

Esta história introduz o visitante da exposição no contexto adequado para poder integrar os diferentes fragmentos que constituem as muitas obras, as quais são acontecimentos insólitos: animais voadores, frutos pairantes e batatas com poderes de levitação.

Se por um lado, as imagens produzidas pelo olhar humano são lugar de decepção por não se poder copular com a realidade, por outro são fonte de prazer: descobrem-se as capacidades criativas e projectivas inerentes à inteligência e isso é o garante do prazer da arte.

Estar sujeito a enganos e a erros perceptivos é o motivo estético do trabalho de Gusmão e Paiva e é daqui que surge o insólito fixado nas fotografias em que os gatos voam, as galinhas ficam bêbedas, os objectos, permanecendo iguais, multiplicam-se e certas comidas têm o poder de fazer os guerreiros vencer dragões cuspidores de fogo.

Como conclusão escrevem os artistas: "há quem chame ao que não se vê indiscernível e nessa sequência em que o homem se alimenta do mundo, representando e idealizando o que o rodeia, também ele é devorado pelos monstros marinhos e por todos os desconhecidos que espreitam à esquina."

Reconstrução do paganismo

Se o fantástico e inesperado é um dos fios da trama do conjunto destes trabalhos, outro é a reconstrução do paganismo, isto é, Gusmão e Paiva, herdeiros do Caeiro de Pessoa, são os descobridores da natureza e reconhecem no natural, isto é, em todo o fenómeno que se manifesta, uma divindade. Os artistas constroem uma ambição sensível que anula a lógica discursiva e conceptual e dá lugar ao anseio pelo contacto directo com todas as coisas: "toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos" escreve Caeiro no "Guardador de Rebanhos".

Recuperar o olhar primitivo é apresentado pelo mestre de Álvaro de Campos como um pasmo. Ele que não tem filosofia, mas "sentidos... / se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, / mas porque a amo, e amo-a por isso" , e é um poeta cujo o olhar é  "nítido como um girassol [...] e o que vejo a cada momento / é aquilo que nunca antes eu tinha visto, / e eu sei dar por isso muito bem... / sei ter o pasmo essencial." (ibidem)

Se, como escreve o Guardador de Rebanhos, "a nossa única riqueza é ver" e os pensamentos "todos sensações [...] pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / e comer um fruto é saber-lhe o sentido", então está-se no reino em que as coisas recuperam uma voz própria e falam na primeira pessoa. E este discurso, já não conformado à matriz humana, revela-se fonte de espanto. Ver as coisas sem filosofia, sem projecção ou representação, é ficar pasmado porque se submete ao permanente risco de tomar o rabo de peixe pela musa mais bela e inspiradora. E o trabalho de Gusmão e Paiva são um caso exemplar deste risco.

"Sempre se julgou encontrar no reino animal, entre os bichos fabulados e os verdadeiros, uma ingenuidade [...]. Esse mistério - o do homem e do mundo - surge assim [...] numa Zoologia Extraterrestre que estuda [...] o que liga a morte ao mundo e o que liga o mundo à vida, à vida sem considerações, só soluço, lampejo." Esta frase dos artistas enquadra as acções animais nos seus trabalhos enquanto preocupação zoológica, a qual não ensaia uma classificação das espécies animais, mas uma fixação descritiva das formas improváveis como os animais (reais, possíveis e imaginários) se comportam. Veja-se o filme "O sonho de uma raia" ou as fotografias "Gato a Cair" e "Galinha Bêbeda",

Os animais de Gusmão e Paiva são extraterrestres porque a sua origem reside no anseio de compreender os ritmos formativos das formas visíveis. A sua estratégia não é a ridicularização das criações fantásticas (como as coisas que terminam em rabo de peixe), mas fazer a sua genealogia. E nesse esforço descobre-se o reino fabulado com a região privilegiado do pasmo essencial de Caeiro. Uma zoologia não dirigida exclusivamente ao reino animal, mas a todas as formas reconhecíveis: a descrição que materializam estende-se dos animais aos sólidos geométricos e aos movimentos celestes e planetários (veja-se os modelos astronómicos das câmaras obscuras "Acerca do Movimento Astronómico" e a fotografia "Sistema Planetário").

Nestes trabalhos nem tudo são fábulas e metáforas barrocas. Essa exuberância formal e conceptual é acompanhada por um esforço de rigor traduzido em filmes de acções escultóricas ou, se se preferir, de esculturas em movimento.

O trabalho destes artistas não é contemplativo. O espectador é colocado na situação de explorador extravagante: tem de descobrir movimentos, subtilezas, segredos. Os enigmas propostos não são feitos pelo simples prazer do difícil, mas são desafios colocados à sensibilidade e exigidos pela complexidade imaginativa das fábulas que criam.

Tudo diz respeito a uma elaborada técnica de construção de objectos e, desta forma, todos os filmes e fotos podem ser vistos como documentação de processos de criação escultórica. A relação não é literal ou didáctica (os objectos não estão ao lado dos filmes como se deles fossem ilustrações), mas existe.

As ligações estabelecidas entre filme, esculturas e o reino animal são de tal modo novas e férteis que criam um horizonte extraterrestre, ou seja, são obras onde se assiste à extrapolação e exorbitância do curso habitual da órbita celeste.

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