Notas graves em corpos agudos

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ROMAIN ETIENNE/ ITEM

Tânia Carvalho apresenta amanhã no GuiDance, em Guimarães, a sua mais recente criação. O Reverso das Palavras explora a base primordial do trabalho da coreógrafa: a relação entre música e movimento

Dela dizem ser "muito expressionista". E muito "existencialista", porque pensa muito "com pessoas que são solitárias". Foi assim que Tânia Carvalho descreveu o seu trabalho enquanto coreógrafa para o festival Les Subsistances, em Lyon, França, onde a peça O Reverso das Palavras, que amanhã se apresenta no GuiDance - Festival Internacional de Dança Contemporânea de Guimarães (Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor, 22h), teve a sua estreia a 29 de Janeiro. Aos 34 anos, e depois de mais de 15 de criações, ainda é preciso encontrar palavras vagas para explicar, ou para entender, o que caracteriza o trabalho de uma criadora que tem um evidente interesse na detonação do movimento poético.

Na nova coreografia de Tânia Carvalho encontramos elementos de 27 Ossos (2012) e De mim não posso fugir, paciência! (2008), na maneira como a coreógrafa vai gerindo uma mesma frase através de variações interpretadas por diferentes bailarinos. Mas aqui, com a cúmplice colaboração de Luís Guerra e Marlene Monteiro Freitas, os outros dois vértices criativos do colectivo Bomba Suicida, ecoam memórias de um outro trabalho, o solo Uma lentidão que parece uma velocidade (2007), em que Tânia Carvalho, depois de experimentar um modo de organização através de uma pauta de música para piano, procurava, no seu próprio corpo, a reconfiguração que antes parecia ter falhado.

Da mesma forma, em O Reverso das Palvavras os corpos revolvem frases que estão pré-estabelecidas, criam imagens a partir de variações dessas mesmas frases e produzem diálogos internos que tornam porosa a composição. Ao mesmo tempo, a presença da música - uma composição de Julia Wolf para um conjunto de gaitas de foles, LAD, interpretada ao vivo por Jean Blanchard -, cria uma ambiência que substitui os diálogos que se pressuporiam esclarecer o sentido do título.

O reverso das palavras será, então, intui-se, o princípio da comunicação, e aquilo que ficará não-dito, não-dançado. No texto para o programa do GuiDance, escreve-se: "A atitude sensível e criativa do corpo - que dialoga dentro e fora do indivíduo - adquire um valor semântico que compromete a totalidade do ser humano." O que isto significa, em termos práticos, é o reconhecimento de uma estrutura que existe para lá do que possa ser definido, e até desejado. "E dessa simplicidade nasce a expressão corporal como linguagem que prescinde do vocábulo. O corpo como ferramenta de comunicação. Não como produtor de gestos estritamente utilitários, mas como corpo que sente e vive."

Um tempo para o corpo

Não será por acaso que esta relação tão íntima entre música e movimento tem afastado o trabalho da coreógrafa de uma definição mais clara, sugerindo, inclusivamente, uma abordagem que a um primeiro nível parece inorgânica e, depois, pelo modo como ensaia uma comunicação, se torna dependente. Como se Tânia Carvalho questionasse se o som que o movimento produz pode equivaler ao movimento que os sons produzem no ar, mas que não vemos.

Com Joana Sá, em 27 Ossos, ou com Diogo Alvim, em Orquéstica (2006) e Icosahedron (2011), Tânia Carvalho havia ensaiado externalizar a música - tal como, agora, faz dialogar as notas graves com a assertividade do movimento. O que daí resulta é uma estranha combinação entre um movimento que parece manietado pela música e uma composição que encontra forma nos movimentos. O Reverso das Palavras "é a natureza, a sequência do movimento". É ainda "o outro lado das palavras: não o que elas escondem atrás de si, mas o instante em que deixam de estar presentes para darem lugar à expressão".

Em Lyon, Tânia Carvalho explicava que se é verdade que a presença de Luís Guerra e Marlene Monteiro Freitas lhe garante "mais liberdade para experimentar", não é menos verdade que "existe tudo escrito". O que significa que a maneira como a coreógrafa trabalha os corpos, "como se fossem superfícies sensíveis", sugere que estes possam "ser transformados, marcados por movimentos, delimitados por gestos". E que a composição que escolheu para criar um diálogo com essa filosofia de criação coreográfica, escrita como se fosse um só som transformado numa suite, pressupõe um trabalho sobre a ancestralidade e a ritualização, através da convocação de elementos visuais mais rudes, como os gestos. "Como há um tempo próprio para a palavra - um tom, uma frase, um acento, uma cadência -, também há um tempo próprio para o corpo. Aqui, é o estímulo sonoro que o enriquece e o movimento que o sustenta, no espaço."

Ao longo dos anos, o trabalho de Tânia Carvalho caracterizou-se por uma atenção particular à notação, ou seja, ao registo formal de todas as indicações de uma escrita coreográfica entendida enquanto partitura. Consciente de que "há intenção no movimento", a coreógrafa procurou sempre contrariar a ideia de que a sua dança existia com base num conjunto de improvisações mais ou menos indicativas do que seria o movimento final. E em O Reverso das Palavras constrói, novamente e em força, uma partitura irresistível que combina a força do que é invisível - a música - com a fragilidade do que achamos estar a ver - o movimento.

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