No mundial dia-a-dia do teatro, a auto-ilusão

Se um teatro sem perguntas é uma demissão, um teatro com respostas é uma (auto)ilusão.

Em 2015, hemisfério Norte, particularmente a ocidente, que se pode dizer num Dia Mundial do Teatro?

Esta pergunta, enquanto exercício de retórica, é quase unânime no aplauso. A resposta que temos para ela pode ser quase unânime na recusa. E talvez seja essa a única razão por que vale a pena fazê-la. As laudas, virtudes ou queixas não parecem fazer muito sentido. No teatro, como na vida, percebe-se que há uma rendição a uma ideologia arrasadora e totalitária, como talvez em nenhum outro momento da História social da Humanidade tenha havido. Sob a capa do dizer que as ideologias acabaram, constitui-se uma falácia, porque o mesmo é dizer que só uma, a vigente, existe. Discurso igual ao dos demais totalitarismos: na primeira metade do século XX em nome da superioridade da raça ou da redenção de classe; hoje da eufemística liberdade, que seria valor inalienável e intrínseco da democracia real (para tomar de empréstimo o conceito paralelo ao outrora chamado socialismo real). Trata-se do maior embuste da modernidade, cuja eficácia supera todas as técnicas de marketing da Coca-Cola. Como falsos anticorpos auto-imunes, ficam espaços de ilhas de resistência isolados e permitem-se os transfers das revoluções para o Facebook. É o garante social da válvula da panela de pressão, que veio estragar a metáfora de Marx.

Perante este teatro no dia-a-dia, o outro, o do palco, parece excedentário. Questionar(-se) é coisa para que não só os públicos, como os criadores e intérpretes, parecem não estar maioritariamente disponíveis. Além dos degredos de novo tipo (expulsando da cidade do espaço das correntes de opinião dominantes – e dominadas – os que não afinam pelo diapasão dominador), é muito doloroso e difícil objectivarmo-nos quando se põe nua a consciência ao espelho. É mais fácil e tolerável e tolerado um teatro de expressão panfletária, aliás adorno indispensável ao traje do embuste. É a autorização para uma catarse de minorias que descomprime quem não se revê (ou diz e quer crer que não se revê) neste sistema, e é uma receita de uma óptima inutilidade, por se confinar a quem já assim pensa. Mas, mais ainda, está integrada e é integrável porque substitui o pensamento crítico pela repetição anódina de lugares-comuns, ora cristalizados, ora tão inovadores ou renovadores como se reinventassem a roda!

Este sistema que aqui se refere não é o que se confina aos modelos económicos e políticos pré-rotulados. É o sistema maior onde se incluem os opositores de subsistemas, que se tornam – objectivamente – parte necessária para que esse outro grande sistema funcione. Desde logo para criar a tal eufemística liberdade. Onde se pode dizer o que se quer, mas, e se, tudo diz o mesmo, mesmo se se diz querer o contrário, desde que os alicerces da democracia real não sejam questionados. O que, para o sistema (seus donos, sequazes e lacaios), é realmente mais perigoso não é a oposição à praxis de momento ou à forma que ela reveste. Mais inaceitado e inaceitável é a capacidade de pensar e pensar com o coração porque essa será (ou seria, não estou certo que chegue a ser) a única forma de fugir ao jogo mais hipócrita e mais devastador de sempre, numa guerra surda e sem quartel que mata anualmente à fome mais do que os bombardeamentos, constantes, das múltiplas batalhas e treinos dessa guerra na sua forma militar.

Trata-se de um – iminentemente, eminentemente, imanentemente – jogo teatral, em que as pessoas se querem objectos de vontades e sensibilidades possuídas por entidades abstractizadas, como, no exemplo mais paradigmático, os dos "mercados"; como se estes, sem aspas, para existirem, não dependessem de pessoas. Só que tais pessoas-objectos são despidas dessa categoria filosófica e diversa do Ser para se transformarem numa categoria única de objectos-pensamento (auto)condicionado do Ter ou fantasiar que se tem. Mais do que o objecto de produção ou consumo, característico do capitalismo histórico, tornam-se avatares de um jogo virtual, num complexo processo pós-capitalista. Personagens-zombies deste megateatro, globalizante até mais do que globalizado, seria (ou será) demolidor para o sistema, no sentido que lhe demos, uma consciência emancipada e a refutação desta condição de não-existência em que “verdades” e “dogmas” dos subsistemas estão confinados aos pragmas transversais: seja no caso dos “maus” ou dos “bons”. É-lhe até preferível a ilusão induzida de saber qual o ponto de chegada, como garantia para se andar como um urso em cima da bola sem sair do sítio no circo da "sociedade do espectáculo" contemporânea. Porque nem sequer estamos no tempo da cascavel que deixa a pele velha, uma vez que da nova nem o ADN ainda se conhece qual venha a ser.

Nesta catástrofe – no sentido exacto do termo e não de expressão da extinção irretornável do humano – ao teatro, mais do que estar ou querer estar nas margens (e as margens são apenas as fronteiras que definem a coisa em si, logo pertença sua), resta-lhe ir para os subterrâneos numa actividade autónoma, mesmo que para um nano-nicho de público. Mais do que nunca, o programa mais avançado será o que se reconhece no aforismo poético de Antonio Machado: El camino se hace caminando. Teatro de catacumbas modernas, a expurgar-se do teatro-outro que se desenrola cá fora e se reproduz em palcos no conjunto do estatismo que se quer fazer crer existir. Ciente da prioridade de uma psicanálise intra-social de cada um de nós, ética e esteticamente plural em formas e conteúdos, contribui para se encontrar um caminho rumo a uma utopia. E nesse dia (se o houver) logo ele proclamará que o teatro disso se terá de desprender novamente, porque o único lugar que a arte pode preencher distintivamente de tudo o mais é o da inquietação.

Se um teatro sem perguntas é uma demissão, um teatro com respostas é uma (auto)ilusão.

Encenador e director artístico de Dogma\12

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