Na América é que é

Para sempre emigrantes, fura-vidas, precários, cães danados – por causa da América e da civilização que por lá se fez à estrada quando ainda nem estrada havia. Para enfrentar o Portugal de hoje, o Teatro Experimental do Porto vai ali matar o primeiro capitalista e já volta. Casa Vaga está no Rivoli para consumar mais uma utopia.

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Fernando Veludo/NFactos
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É só mais um dia como os outros no saloon de uma middle-América prometida mas ainda por pacificar quando Shortlove Gonzalez (Gonçalo Amorim) e Peter Kill (Pedro Gil) fazem a sua entrada triunfal agarrados aos chapéus de cowboy, às pistolas de fulminantes e à tralha revolucionária com que vão consumando, à falta de aulas práticas, a sua aprendizagem do socialismo utópico. Bang-bang (ou, em bom português com sotaque americano, “pah-pah”), e os dois cowboys portugueses, most wanted por andarem a espalhar pelo early Wild West ideias perigosas como “salários dignos” e “uma distribuição mais justa da riqueza”, rebolam pelo chão, escapando às balas perdidas e às ameaças de morte, enquanto os empregados do saloon limpam os copos a um pano de linho – matar e morrer é business as usual na terra das oportunidades, neste como em todos os outros dias.

Teria sido assim com eles, matar e morrer, se logo a seguir as portas do saloon não se tivessem aberto de rompante para deixar entrar, cheia de pinta, toda de preto, a miúda a quem terão de agradecer para sempre a bolsa e a vida: Rachel Wild Caster (Raquel Castro). Duas palavras e estarão entendidos: fala português, é como eles uma emigrante, fura-vidas, precária, cão danado sem eira nem beira mas com uma bagagem daquelas, cheia de letra morta à espera de se fazer carne viva (Fourier, Saint-Simon, Owen, Proudhon, Tocqueville, assim do tipo: “‘A pobreza nasce até da abundância’. É tão actual e já foi escrito, quê?, há uns 20 anos… Mil oitocentos e…”).

Também é tão actual e já foi escrita, quê?, há uns dois meses, esta Casa Vaga que o Teatro Experimental do Porto (TEP) ocupa desde ontem e até domingo no Teatro Municipal Rivoli. Nalgumas coisas, observada assim de longe e com uma sinopse a reduzir os dois fenómenos ao seu mínimo denominador comum, o novo espectáculo do TEP parece ser como um daqueles episódios do Portugueses pelo Mundo, só que há mais de cem anos, com terra, gado e índios a perder de vista (mas também aí os chineses estavam a chegar, para construir o caminho-de-ferro e abrir lavandarias) e um final que ainda não sabemos bem se vai ser feliz.

“A América está no lugar certo, no tempo certo. Na América é sempre hoje. Na América é que é”, dizem eles quando a casa ainda está vaga – ainda não sabem que será incendiada até não ficar nada a não ser três cobertores de lã e outras tantas canecas de esmalte vermelho. Este sítio onde agora os encontramos antes da partida, acreditam, é aqui e é agora. “Vivemos num lugar e num tempo em que ainda podemos mudar as coisas. Foi para isso que viemos para cá. Enquanto a realidade dormir, a ficção trabalhará.”
Sigamos para Oeste.

Compatriotas
Tão nova, a América de Gonzalez, Kill e Wild Caster é já o abominável “quintal do capital” que, por não abrir caminho à revolução, está no caminho da revolução. Mas é também o país onde, para lá do sol posto, há um moinho abandonado,” um rio com água fresca, uma cascata. Um país onde se pode começar de novo e construir, do nada, “um indissolúvel continente”: “É uma casa vaga. E não está lá ninguém.” Vê-los-emos a começar, do nada, uma comunidade exemplar. “Junho e já somos 60. Julho, calor, somos 70, somos 90. Instalámos a caldeira. Desviámos um curso de água. O primeiro casamento. Vamos ter bebés. O primeiro divórcio (oh!). Dinamitámos uma linha de caminho-de-ferro e com isso conseguimos libertar alguns coolies que eram mão-de-obra forçada. Temos duches colectivos. Temos sessões públicas de esclarecimento. Já ninguém trabalha mais do que cinco horas por dia. Construímos um teatro. Assaltámos um banco. Estamos a conseguir. Há um jornal em Nova Iorque que fala de nós. Somos o mundo novo.” E depois o tempo pára o suficiente para o primeiro daguerreótipo no alpendre da casa vaga, que também será o último.

Criada a quatro (Rui Pina Coelho ouviu, falou e depois fixou o texto final), levantada a três (mais os dois empregados de saloon que também são músicos atrás do balcão, Pedro João e Ricardo Nogueira), Casa Vaga é também mais uma tentativa do TEP para fazer coisas, em vez de ficar só a falar delas. “A emigração é um tema que a companhia tem explorado e o Rui propôs-nos esta moldura dos três portugueses no Faroeste, numa altura em que a América era terreno fértil para a criação de comunidades socialistas experimentais”, começa por explicar Pedro Gil, que chegou para ser encenador convidado e acabou co-criador do espectáculo. “O verdadeiro ponto de partida foi mais uma vez a pergunta ‘como mudar o mundo?’. Daí surgiu a ideia da viagem no tempo: se matarmos aquele capitalista original… apesar de ser obviamente uma estratégia fársica, porque não é fácil estabelecer a origem do capitalismo. Mas pusemos isto na América porque trabalhámos vários clichés e interessava-nos, narrativamente, o anacronismo”, continua Gonçalo Amorim, director artístico do TEP e encenador de serviço. No teatro, completa Raquel Castro, “ainda é possível contar uma história em que a ficção ganhe à realidade, o que torna operacional essa ideia de mudar as coisas”.

A América, portanto, no sentido em que então “a América podia ser tudo”, insiste Pedro Gil. Tudo até a terra prometida para três portugueses, mais aquele tubarão que eles irão encontrar, Big Daddy Brian, açoriano do Pico. Foi baleeiro, horticultor, vendedor ambulante, cozinheiro; trabalhou no caminho-de-ferro, na construction, até foi policeman; deu o nome a dois desfiladeiros, duas ravinas, um prado – e tudo sem saber ler nem escrever. “Sabem quantas vezes a minha propriedade é maior do que a ilha onde eu nasci? Ah, meus queridos compatriotas… Quem diria?”, exclama quando se vê prestes a ser envenenado às mãos dos cowboys de Casa Vaga e da sua vontade de acabar de vez com o capitalismo. “É como se a farsa servisse para nós, como actores, e vocês, como espectadores, deixarmos de ser cínicos – e ultrapassarmos esse abismo em relação à possibilidade de mudança que é tão difícil de destruir. De repente nós já estamos mesmo a querer dizer aquelas coisas e o Big Daddy ainda está no showbiz. Só que já não dá para brincar mais”, sublinha Gonçalo Amorim.

Fim de brincadeira, portanto. E agora veremos se Gonzalez, Kill e Wild Caster conseguem matar o emigrante de sucesso que ainda por cima é português e ficou viúvo tão novo. A imagem do capitalista, admite o encenador, foi “muito polémica dentro da equipa”. Era preciso fazer com que fosse difícil matá-lo – era preciso que ele “passasse manteiga” com este discurso de que tudo é possível para quem se mata a trabalhar. “Apetecia-me dizer aquelas generalidades de que os portugueses não matam, mas a História está cheia de compatriotas nossos que fizeram a folha a este ou àquele. Os portugueses matam, ponto. Matam por causa da água, por causa da terra, por causa da mulher”, insiste, ressalvando que começou os ensaios “a dizer que seria incapaz de matar alguém, ou de integrar uma organização política que admitisse essa prática”. Também foi polémico: “Eu acho que seria capaz de matar por uma questão de sobrevivência ou de resistência a uma ditadura opressiva”, diz Pedro Gil. “E no teatro”, continua Raquel Castro, “somos capazes de fazer tudo, embora não façamos seja o que for”.

Não seremos spoilers. Não diremos se Gonzales, Kill e Wild Caster mataram o primeiro capitalista, por acaso dono do terreno onde construíram a sua casa vaga e pareceram poder começar a mudar o mundo antes que o mundo os mudasse a eles. Mas diremos que este espectáculo foi de facto construído como uma máquina do tempo, género Regresso ao Futuro: é bem possível, é até desejável, que quando sairmos da sala o mundo esteja diferente. 

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