Marwan, pintor de situações humanas

Primeiras obras / 1962-72, no Museu de Serraves, constitui uma aproximação inaugural e intensa do público português à obra de Marwan, o artista sírio de Berlim que pinta a tragédia do exílio e rostos que se transformam em paisagens.

Foto
FILIPE BRAGA

Quem entrar nas galerias do primeiro piso do Museu Serralves e responder à chamada das pequenas aguarelas e pinturas que à direita espreitam das paredes, vai encontrar rostos, cabeças, lábios, olhos, corpos. Rostos receosos, tristes, serenos, contidos em cabeças grandes, seguras sobre corpos que têm membros a mais ou a menos (braços, mãos, pernas). Corpos pequenos, de menino, com cabeças grandes, de homens. E cabeças e rostos que se desfazem em paisagens. Por estas descrições, pouco há de “realista” ou convencional nas pinturas.

O que estas devolvem ao espectador são figurações peculiares, fantasiosas. Mas pense-se, sem abolir o mistério, no que provocam: compaixão. Pode ser compaixão o que Primeiras obras / 1962-72, do sírio Mohamed Marouan Kassab-Bachi desperta no espectador. Nascido em Damasco, no ano 1934, aquele que é considerado um dos mais importantes artistas árabes da actualidade, estabeleceu-se em Berlim nos finais dos anos 50, iniciando um percurso por diversos espaços expositivos europeus. O interesse pela pintura sugira cedo, ao fim de uma infância feliz passada na capital síria. “Comecei a pintar com 13 anos e decidi ser pintor com 16, 17 anos. Pensei também em ser escritor, sempre amei a literatura, a poesia, mas a pintura foi mais forte. Não sei explicar, foi mais existencial, mais importante. Foi a forma que eu encontrei de me confrontar com a vida e de exprimir a minha vida. Era o meu destino [ser pintor]”.

Em Damasco “aprendeu” a desenhar e a pintar espantado com o fraccionamente da luz, com a criação pelos raios de sol de contrastes de chiaroscuro, e descobriu interditos, códigos culturais, de classe e género. Neste período, a euforia da independência política (em 1946) ainda não se apagara, mas já se confundia com o clamor da derrota dos exércitos árabes na primeira guerra contra Israel, em 1948. Nos anos seguintes, chegaria o desencanto com instabilidade política na Síria e a tragédia da Palestina e Marwan juntava-se à diáspora árabe na Europa. Ao contrário da maioria dos seus amigos, contudo, não escolheria Paris, mas Berlim.

“Foi uma boa decisão”, diz ao telefone da capital alemã. “Berlim era o Polo Norte de Damasco, uma cidade muito diferente de Paris, menos doce. Gostei muito da mentalidade alemã. Não me arrependi nada”. As afinidades na arte francesa também já estavam, por essa altura, diluídas. Com excepção de Courbet, as referências eram agora outras e emergiam, em 1963, nas suas aguarelas e em pinturas (como Amm Meer): Francisco Goya, Edward Munch e sobretudo Francis Bacon. “São todos pintores que admiro, são muito importantes para a minha pintura. Quando tive a oportunidade de conhecer melhor os seus trabalhos, descobri que misturavam ideias ambiciosas sobre a pintura com uma ideia de ‘política’. Não faziam arte pela arte, nem se limitavam a representar paisagens ou fazer retratos. Estavam num espaço indefinível. Para mim, o Bacon é muito especial, porque sua pintura exprime, no meu entender, as tragédias do século XX, mas sem ser transparente, permanece uma indagação da pintura”.

Carne e solidão
Ao longo dos anos 1960, o percurso de Marwn na pintura não conheceria hesitações, nem pausas. “Tinha ido para a Alemanha com esse fim, munido da minha filosofia sufi, da minha sabedoria oriental (risos). Os primeiros anos não foram fáceis. Tive que trabalhar para fazer os meus estudos [na Hochschule für Bildend Künste]”. Na cidade alemã, ainda reflectiria sobre a sua breve militância política e a ligação ao partido socialista e pan-árabe Ba’ath, antes de tomar a decisão de se dedicar exclusivamente à arte. “Em Berlim, todos os árabes que eu conhecia, fossem iraquianos, sírios ou palestinianos, tinham escolhido a activismo político. Eu perguntei-me, então: porquê ser mais um? Não faria qualquer diferença. Não havia muitos pintores árabes, preferia seguir a pintura”.

Foto
Nascido em Damasco, no ano 1934, aquele que é considerado um dos mais importantes artistas árabes da actualidade, estabeleceu-se em Berlim nos finais dos anos 50, iniciando um percurso por diversos espaços expositivos europeus FILIPE BRAGA

Desengane-se quem procurar nesta exposição imagens das intifadas, de explosões, de atentados ou de arame farpado. Há certamente referências à história intelectual e política da Síria e a comissária Catherine David evoca, no catálogo, a propósito da série desenvolvida entre 1969 e 1970, o keffieh (o lenço tradicional dos árabes) e as silhuetas dos fedayeen, mas basta olhar para os “retratos “ do poeta iraquiano Badr Shakir al Sayyab e do activista sírio Munif al-Razzaz: a primeira pintura é da cabeça (o busto) do poeta sobre um plinto e sob o pé de uma cruz, a segunda mostra-nos a cabeça de Al Razazz repousada sobre uma guilhotina ou o que podia ser a ponta de um cutelo. Em comum os dois rostos têm o olhar de uma solidão resignada e desconfiada e a matéria os envolve: a carne (de uma vulva, de carniça, de um membro deformado ou agigantado).

 “Não são retratos, essas pinturas são situações humanas. É assim que as vejo”, ressalva o artista. “Quando cheguei a Berlim comecei a ordenar as minhas ideias, a pensar sobre o que me tinha levado a sair da Síria. Procurei a minha identidade na pintura, na minha ‘escrita’. Nesse processo fui buscar muitas coisas à minha infância e adolescência em Damasco, aos meus sonhos e aspirações e cheguei a estas figuras que são situações humanas de mágoa, tristeza, saudade, amor”. O exterior, as ruas e os habitantes de Berlim também serviram de inspiração. “Aparecem” sob a forma de um misteriosa perna feminina ou de uma figura que se esconde em segundo plano. “A minha pintura nasce de um universo privado, mas nesses anos deixei entrar elementos de situações que eu observava no quotidiano. Essas pernas, esses corpos tinham muito a ver com pessoas que no meio da solidão encontravam algum tipo de consolo. E que viu na rua e nos edifícios da cidade”.

Rostos em paisagens
A vida, a morte e o erotismo são os vértices da pintura de Marwan. A vida surge nos lábios, nas mãos, nas cabeças, nos olhos; a morte nas ameaças que fragilizam, assustam aquelas figuras; o erotismo nos toques, nos gestos de sedução aparente, nas mãos sobre os corpos. O que há aqui de auto-retrato? “Existem elementos que tirei de mim mesmo, da minha vida, mas o que procurei sempre foi exprimir o que as situações humanas escondem. Por isso, o que espero do espectador é que ele descubra, que escave, que procure o que está pode detrás das minhas pinturas. Será amor, tristeza, dor, saudades de casa? O que une estes trabalhos é a minha identidade e a do ser humano, entre a tragédia e alguma esperança”.

Marwan sublinha a ideia de esperança. “Sou muito feliz enquanto pinto, se não fosse, parava de pintar. Mas essa alegria não é evidente para o espectador. Debaixo de cada uma das minhas pinturas existem muitas outras pinturas. Por vezes, 50. Esse é o meu processo de trabalho. Repetir, fazer de novo. Ao fim de manhã posso achar que a pintura está pronta, mas mudo com facilidade de ideias. As minhas pinturas nascem de pinturas o que nem sempre agrada às pessoas. Querem repostas rápidas, explicações fáceis e agradáveis. Deixo-lhes o mistério de um pintor sírio, o indecifrável”. E as pinturas vão modificando, ao longo do tempo, os rostos e os corpos. Nas telas datadas de finais dos anos 60, os corpos aumentam de tamanho, tornam-se mais delgados ou harmoniosos, os olhos afastam-se ou olham de cima o espectador. A timidez assustada, a resignação séria dá lugar uma melancolia delicada ou transforma-se numa paisagem que ocupa toda a tela em Cara paisagem II (1972). “Sim, os corpos, os rostos não são os mesmos. A minha pintura é um processo contínuo, tem em si o traço do tempo. Nesse sentido, é também uma biografia. Sobre a paisagem, mais do que como género, relaciona-se com uma ideia que é muito importante para os árabes que é a ideia de terra, de sítio. Não pude deixar de a trazer também para minha pintura”. Em 1972, Marwan ainda visitava o país natal duas vezes por ano, mas com a eclosão da guerra civil em 2011 deixou de o fazer. “Agora quando posso visito o Líbano duas vezes por ano. Ainda tenho familiares na Síria. Dizem-me para não voltar”.

Sugerir correcção
Comentar