Gasolina

Há uns anos, quando abastecíamos o carro de gasolina no posto da Auto Bemguiados, havia um rapaz que nos dava beijinhos no pescoço. Era um rapaz com uma condição mental especial, é verdade, mas era absolutamente simpático. Talvez alguém lhe tivesse ensinado aquela malandrice, que era uma malandrice bonita, para surpreender as pessoas com um sorriso muito grande. Imagino que fosse algo que fizesse com candura em casa, aos avós, aos pais e às visitas. Dava um beijinho logo em fugida, recuando uns passos, alegre e expectante.

Costumava vê-lo por ali. Às vezes, passava também pelo perímetro das escolas, caminhava um pouco como quem procurava divertir-se, como quem procurava amigos. Ao menos, amigos pequenos, daqueles de cinco minutos e muito entusiasmo. Lembro dele quando eu ainda era aluno de liceu. Gostava de lhe dizer olá. Ele sorria sempre e tinha jeito de quem se preparava para o jogo do gato e do rato, como uma criança eterna.

Tenho uma ternura profunda pelas crianças eternas. Sei que são sobretudo pessoas afectivas. Cumprem uma inteligência que vem intensamente do coração. Esperam dos outros um carinho criativo e incansável. Vivem o instante num frenesi. Mas também são capazes de entristecer profundamente, num desalento que nos destrói de ver. As crianças eternas precisam de uma espécie de festa contínua, uma prova ininterrupta de que tudo está bem, de que gostamos delas e podemos seguir a brincar.

Não sei quem seria aquele rapaz. Digo rapaz, mas deve ser já um senhor, hoje, talvez até mais velho do que eu. Nunca nos dizia o nome. Eu creio que não saberia falar. O seu discurso era feito com o olhar. Via as coisas como quem saltitava. Havia um mundo de aventuras no seu espírito. Um funcionário do posto de gasolina falava-lhe, dava-lhe um certo abraço, a reprimir os beijinhos quando algum cliente o estranhava demasiado. Tantas vezes eu expliquei, especialmente às senhoras mais pudicas, que o rapaz estava apenas a chamar-nos para dentro da sua particular felicidade. Não era uma maldade, era a mais inofensiva ideia.

Comecei a conduzir à revelia. Quando miúdo, achava que me faltava o talento para os carros, supunha que morreria num acidente, estaria na estrada com medo. Digo que comecei a conduzir à revelia porque o fiz apenas para poder levar o meu pai ao hospital no tempo horrível do seu declínio com o cancro. Em certas alturas, a gerir numa profunda tristeza a situação do meu pai, a surpresa daquela brincadeira no posto de gasolina da Auto Bemguiados era a única beleza do dia. Perante a inocência daquele rapaz, o mundo simplificava-se. Por um breve instante, o meu amigo de cinco minutos sorria genuíno e brincalhão, e aquela era uma normalidade que me fazia muitíssimo bem. As pessoas diziam coisas, chamavam-lhe malandro. Ele escapulia-se de um lado para o outro e estava tudo certo.

Costumava pensar que aquele rapaz nunca poderia conduzir o pai ao hospital. Nem que fosse à revelia da sua vontade. As crianças eternas não conduzem carros. Isso levava-me a sentir uma clara responsabilidade.

Subitamente, deixei de o ver. Tenho a impressão de ainda lhe haver percebido os cabelos grisalhos. Já estava mais parado, sem os beijinhos, um pouco mais gordinho. Muita gente já nem é do tempo daquela brincadeira. Gente com menos sorte do que eu, do que tantos de nós. Sigo passando para abastecer, mas não há senão a equipa de funcionários, alguns também já demasiado recentes. Ficou apenas uma história da única gasolineira com beijinhos do mundo.

Quando os miúdos esperavam os autocarros à porta do liceu, era comum fazerem-lhe perguntas. Como apenas sorria, fantasiavam-se as respostas. Achávamos que ele tinha mil anos e duraria para sempre. Era inventado pelo céu, como uma cria de deuses feita só para ser feliz. Lembro-me bem de o defendermos. Era fundamental que não se assustasse, que não entristecesse, que fosse feliz. Fazíamos uma pequena roda em torno dele para sermos um escudo protector. Ele, de vez em quando, escolhia uma menina e dava-lhe um beijinho. Era um amor ao acaso. Bonito. Puro.     

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