Esta noite dança-se, chora-se e diz-se Pirandello na Zona J

Até domingo, dia 28, Mónica Calle ensaia durante o dia um espectáculo que apresenta todas as noites na Casa Conveniente, em Lisboa. Esta Noite Improvisa-se cruza-se com a vida do Bairro do Condado (Zona J), em Chelas, e chama essa realidade para dentro do teatro.

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Esta Noite Improvisa-se é um espectáculo que se cruza com a vida do Bairro do Condado (Zona J), em Chelas Daniel Rocha
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Esta Noite Improvisa-se é um espectáculo que se cruza com a vida do Bairro do Condado (Zona J), em Chelas Daniel Rocha
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Esta Noite Improvisa-se é um espectáculo que se cruza com a vida do Bairro do Condado (Zona J), em Chelas Daniel Rocha
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Esta Noite Improvisa-se é um espectáculo que se cruza com a vida do Bairro do Condado (Zona J), em Chelas Daniel Rocha
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Esta Noite Improvisa-se é um espectáculo que se cruza com a vida do Bairro do Condado (Zona J), em Chelas Daniel Rocha
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Esta Noite Improvisa-se é um espectáculo que se cruza com a vida do Bairro do Condado (Zona J), em Chelas Daniel Rocha

“Pirelli! Pepperoni!” A actriz Sofia Vitória, actualmente na pele da casamenteira Dona Inácia, quer gritar pelos pretendentes das suas filhas, mas saem-lhe marcas de pneus ou ingredientes de pizza ao não conseguir encontrar, nos papéis que tem à sua frente, os nomes das personagens.

Esta manhã improvisa-se no “palco” também ele improvisado da Casa Conveniente em Chelas, com os actores encostados à parede, em fila, de pé, poucas horas depois de a maioria tomar pela primeira vez contacto com o texto de Esta Noite Improvisa-se, de Luigi Pirandello.

A encenação de Mónica Calle ensaia-se neste frenesi nervoso de quem, durante sete dias (22 a 28 de Junho), reunirá actores profissionais e não profissionais de manhã para preparar o espectáculo dessa mesma noite, à semelhança do que já tinha feito em 2009 no Cais do Sodré. Calle insta Sofia Vitória: “Depressa, Sofia, não pares! Baixa as folhas, temos de te ver a cara.”

Estamos no início do texto, quando Sofia enquanto Dona Inácia apresenta as restantes personagens, na primeira sessão de trabalho. Mas ao final da noite, já ao cair da primeira das representações de Esta Noite Improvisa-se no Bairro do Condado (popularmente conhecido como Zona J), em Chelas – e depois de uma espontânea sessão de karaoke no Restaurante Márcio, com direito a Vermelho (Fafá de Belém) ou Lusitana paixão (Dulce Pontes) em ambiente festivo –, David Pereira Bastos (Rico Verri) e Sofia Dinger (Mommina) interrompem a folia para um pouco de teatro.

A encenadora, sentada no chão, entre o público, vai gritando as correcções de uma cena que não terá sequer chegado a ser ensaiada: “Leva-nos contigo, Sofia! Não nos estás a levar”; “mais alto!”; “não desperdices energia com o corpo, concentra-te na voz!” Com o público em clareira à sua volta e o karaoke silenciado, também esta Sofia se espreme tentando responder aos comandos de Mónica Calle. Acaba em lágrimas, a tentar desesperadamente ser uma Mommina também conduzida ao desespero de se ver gasta pelo casamento e com a sua voz de cantora lírica arruinada.

Calle gosta de trabalhar com esta intensidade e velocidade, em que quase não há tempo para a dúvida e o espectáculo toma muitas vezes direcções inesperadas. “Os actores têm de trabalhar nessa rapidez e nessa violência, têm de se atirar e de ser muito corajosos”, admite. “A forma como têm de lidar com o medo e insegurança tem de estar noutro sítio.” A cena final desta noite, empurrada ao limite, é um espelho da constante confusão entre ficção e realidade preconizada por Pirandello. Estamos tanto diante de Mommina e da encenadora Hinkfuss, mas também de Sofia Dinger e de Mónica Calle, as quatro a tomar conta da cena.

“Este texto do Pirandello permite-me uma série de coisas que queria fazer aqui”, conta Calle ao PÚBLICO. “Permite-me trazer muita gente para trabalhar nestas circunstâncias, poder fazer uma cartografia do bairro e criar ligações com uma série de lugares e de dinâmicas do espaço público.” Com Boa Alma, o monólogo escrito por Luís Mário Lopes (a partir de Brecht) para Mónica Calle interpretar, e que funcionava como narrativa paralela da sua biografia e do seu percurso do Cais do Sodré para Chelas, o teatro acontecia no apartamento descascado em que hoje funciona a Casa Conveniente, onde no meio de algum entulho (sobre o qual há portas a servir de bancos para o público) o teatro floresce em condições mínimas e revela o seu poder de criar mundos onde nada parece existir.

Quando Mónica Calle repete “Leva-nos contigo, Sofia!”, o público está todo com a actriz, suspenso das suas palavras em desabrido carrossel emocional, com altos e baixos, acelerações e desacelerações e já ninguém está a pensar na Fafá de Belém de há uns minutos. Vai-se com a actriz e atrás da sua caminhada em luta com a encenadora. Quando termina, de repente, volta a haver um karaoke na sala.

Todos têm protagonismo
O Restaurante Márcio é a última paragem de Esta Noite Improvisa-se, depois de um arranque na Casa Conveniente, uma procissão pelas ruas do bairro, uma cena de cabaret emergida no Café Paragem e uma convocação dos habitantes para a venda de bebidas ou de gelados caseiros que entra no fluxo do espectáculo. O objectivo é duplo: a realidade local agarra-se ao texto através dos lugares e das pessoas e dos actores não profissionais que têm direito ao seu protagonismo (através da introdução de falas não previstas, de celebrações dançadas de uma Lisboa que baila com uma ginga africana), mas Calle quer também que se torne claro para quem ali mora o que se faz, afinal, na Casa Conveniente.

Consciente da sua falta de jeito para “dizer que não a alguém”, Mónica Calle não fez castings e acolheu todos os interessados do bairro para integrar o espectáculo. Por isso, por querer “trabalhar sobre o colectivo, mas também sobre o individual, em que cada um tem o seu protagonismo”, o texto é engrossado com acrescentos (de outras criações de Pirandello) aproximando a ficção teatral da realidade em que é produzida.

O jogo é sempre esse, de uma troca constante entre vontades de encenadora, actores e personagens (mais ou menos contrariados pelo rumo da peça), e de uma disponibilidade para reagir àquilo que possa acontecer em seu redor. Não há maior provocação do imprevisto do que partir para as ruas e esperar que a vida se manifeste, interfira e obrigue a que, enfim, se improvise.

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