E se passássemos ao ataque?

Trans/missão é aquele momento em que um colectivo de teatro, o Visões Úteis, se interroga sobre a utilidade daquilo que andou a fazer nos últimos 20 anos – e sobre esta tendência muito portuguesa de deixar a revolução para amanhã, quando a podíamos fazer já hoje.

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Trans/missão é o making-of em directo do atribulado processo de criação de uma ópera “revolucionária” DR
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Trans/missão é seguramente aquele momento em que um colectivo de teatro se interroga sobre a utilidade daquilo que andou a fazer nos últimos 20 anos e se dispõe a reconhecer que não mudou o mundo DR

Há mais de dez anos – metade dos que eles já levam da tensão entre o pensamento e a acção que é a vida de um colectivo de teatro com cabeça e, sobretudo, com essa forma particular de educação sentimental que é a educação política, espécie supostamente em vias de extinção na geração nascida depois do 25 de Abril – que o Visões Úteis se cruza com um livro, Portugal, Hoje – O Medo de Existir, de José Gil (Relógio D’Água, 2004), que continua em dia em 2015.

Por alguma razão – eventualmente essa tendência muito portuguesa de deixar a revolução para amanhã, quando a podíamos despachar já hoje –, a companhia de Ana Vitorino, Carlos Costa e Pedro Carreira nunca tinha feito nada com ele a não ser mencioná-lo num espectáculo anterior. Até este Trans/missão que ontem se estreou no Teatro Municipal do Porto – Rivoli e ali fica até domingo, recriando em palco a dupla dificuldade de agir colectivamente no teatro e no mundo real e passando, pelo menos uma vez na vida, finalmente ao ataque.

Não é ainda a acção directa – ainda que esta seja a companhia de teatro de onde saiu de facto a líder de um partido com assento parlamentar, Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, o que não sendo leitura obrigatória para o espectáculo é todo um subtexto altamente pertinente para a digestão de Trans/missão. Mas é seguramente aquele momento em que um colectivo de teatro se interroga sobre a utilidade daquilo que andou a fazer nos últimos 20 anos e se dispõe a reconhecer que não mudou o mundo. Um bocado como as centenas de milhares que estiveram nas grandes manifestações de 15 de Setembro de 2012 e de 2 de Março de 2013 e depois deixaram ficar tudo como dantes: “Foi bonita a festa? Foste à rua? Repetiste as palavras de ordem? Punho em riste, coração ao alto? Sentiste a praça a ferver? E por um momento parecia mesmo que estava lá tudo, a grande mobilização popular, as condições objectivas, um propósito claro? E vais para casa? Calam-se os megafones, desmobilizam-se os voluntários que iam dizendo à malta para andar ‘agora, mais depressa, mais devagar!’, abrem-se as lancheiras, o pessoal senta-se a conversar, cada um para seu lado outra vez, todos com o sentimento de dever cumprido. E a mudança? Talvez na próxima, não é?”

Do pensamento à acção
Assim à primeira vista, Trans/missão  é o making-of em directo do atribulado processo de criação de uma ópera “revolucionária” – tão revolucionária que às tantas o libreto poderá incluir (e editar, porque causa da métrica ou do cânone…) as “vozes de protesto” reais que se ouvem no autocarro e que os finalistas do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto compilaram para o Visões Úteis (frases como esta, ouvida na linha 402, São Roque-Marquês: “No tempo do Salazar ele via o que era bom”; ou como aquela, ouvida na linha 203, Marquês-Castelo do Queijo: “Quem mexeu nas reformas foi o sacana do Passos Coelho, menino do papá, nunca trabalhou na vida”), ou o poema em que Ho Chi Minh escreveu “o poeta devia saber liderar um pelotão de choque”. Mas é também a reflexão interna que a companhia anda a fazer há anos, e que agora pôs nas personagens reais do compositor que está a escrever uma ópera e do encenador que lhe está a dar assistência dramatúrgica – e, para entrarmos na peça dentro da peça, que pôs também na personagem fictícia do homem que finalmente se dispõe a juntar-se a um grupo para forçar a mudança, já que ela não acontece sozinha.

Mais a fundo, Trans/missão é também uma vontade de ultrapassar o diagnóstico, particularmente explícito no ensaio de José Gil, “da dificuldade de inscrição e de mobilização colectiva dos portugueses” – essa coisa estranha de nunca conseguirmos lutar a sério, às vezes (como na Primeira Guerra Mundial) porque não temos equipamento, outras (como na Segunda Guerra Mundial) porque não é “assunto nosso”, outras ainda (como na Guerra Colonial) porque “não sabemos bem” o que lá estamos a fazer. “O diagnóstico é óptimo, mas e depois? Para que é que servem se nos deixam ainda mais deprimidos? Qual é o passo seguinte? Decidimos pôr dois artistas, o Carlos Costa e o João Martins, a reagir a esse diagnóstico e a dar o passo em frente”, explica ao Ípsilon Ana Vitorino, que co-assina a direcção artística deste espectáculo verdadeiramente colectivo (o mais colectivo da história de uma companhia que sempre teve uma direcção colectiva e processos de criação colectivos, “com todos os problemas que isso levanta na prática”), envolvendo o fotojornalista do PÚBLICO Paulo Pimenta, os fotógrafos do Mira Forum, as associações Porta Jazz e Sonoscopia, o Ensemble Super Moderne e o NEFUP – Núcleo de Etnografia e Folclore da Universidade do Porto. “Vimos um paralelo entre a ideia de os portugueses terem dificuldade em passar da energia das manifestações para formas de organização e acção colectiva – há de facto um bloqueio nessa fase – e os próprios processos de criação artística. Isto num país em que oporem-se às tuas ideias é um insulto pessoal, em que o debate ainda está nesse ponto de imaturidade”, continua. Tanto que, em 20 anos de história colectiva, o Visões Úteis se foi habituando a ouvir das outras companhias: “Isso do colectivo é uma coisa muito bonita para se dizer à imprensa, mas agora a sério: quem é que manda?”.

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É justamente a fractura entre o pensamento e a acção que as duas personagens (personagens reais, na medida em que correspondem realmente ao Carlos Costa, actor e encenador, e ao João Martins, músico e compositor, do Visões Úteis) trazem para o palco e expõem diante dos espectadores. Mas o espectáculo, sublinha Ana Vitorino, não é apenas para o público. “É um espectáculo muito importante para nós também. Fizemos 20 anos no ano passado e também chegámos a um ponto em que questionamos a própria dinâmica de criação e produção artística. Temos a sorte de receber apoio da DGArtes, o que nos dá um certo conforto mas também não nos permite descansar quando achamos que não é a altura certa para um projecto com que nos comprometemos há quatro anos e que entretanto até já está contratualizado. É o tipo de armadilha em que se pode cair: produzir, produzir, produzir, como se cumprir o número de produções fosse mais importante do que o conteúdo do que estamos a fazer”, argumenta.

O Visões Úteis, garante Ana Vitorino, ainda não está aí, nesse ponto em que o encenador e o compositor da peça se encontram – o ponto de não-retorno. “Mas temos os nossos dias.”

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