60 anos de como se faz muito com pouco no design português

De Como se pronuncia design em português?, exposição entre o Mude e Paredes, não saem marcas do que é o "made in Portugal", mas sugere-se uma revalorização da manufactura.

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Mesa de refeições em vidro e madeira, Eduardo Anahory, 1970 João Silva
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Jogo de Xadrez, Carlos Galamba, 1973 João Silva
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Cadeira de Raul Lino, da Casa do Cipreste (Sintra), não datada mas estimada entre 1914/15 João Silva
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Cadeira de Francisco da Conceição Silva, 1965 João Silva
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Aparador "Hk O.75", da MO-OW Design, por Ângela Frias e Gonçalo Dias, 2012 João Silva
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Cadeira de aço inox "Line", de Toni Grillo para a Riluc (2011) João Silva
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A exposição estará no Mude e em Paredes até Maio João Silva

Uma mesa, duas cadeiras. A mesa é de Eduardo Anahory e as cadeiras de Raul Lino e Francisco da Conceição Silva. Uma refeição interessante de três clássicos do design portugueses. Como se pronuncia design em português?, pergunta o Museu do Design e da Moda (Mude) numa das suas mais importantes exposições nos seus quase seis anos de vida. Sessenta anos de design de equipamento projectado em Portugal, espelhados naquele encontro à mesa de três luminárias, mas também numa cadeira que já é uma velha conhecida, a Osaka’70 de António Garcia, mas que nunca vimos assim: despedaçada, espalmada no seu menor volume, versão faça-você-mesmo e com o engenho à vista.

“Nunca andei à procura de uma marca”, postula Bárbara Coutinho, comissária da exposição e directora do Mude, sobre uma exposição que começa com um colar com o brilho dourado e passado das moedas de um escudo (Fora de Série, de Paula Crespo) e que termina com um cálice da Atlantis (Splendidor, de Paulo Sellmayer, 2012) em que trabalha as suas emblemáticas pontas de diamante. Nem procurou uma resposta de sentido único à pergunta-título, porque ela é tão variada quanto o fio Zipper (2003) de Filipe Faísca, designer de moda, o espelho Álvaro (1975), de Álvaro Siza, ou a jarra Mão Aberta (2000), de Souto Moura, ambos arquitectos com Prémio Pritzker. 

Mas voltemos à mesa de tampo de vidro redondo e pé de paralelepípedo de madeira rasgada aqui e ali, escolhida a convite do PÚBLICO pela comissária juntamente com a cadeira quase trono de Raul Lino e pelo trabalho sobre o tradicional entrançado de vime nos assentos portugueses de Conceição Silva. São peças que simbolizam o que cada um dos três núcleos da mostra sugere sobre o design feito em Portugal.

Não cronológica, a mostra é um caminho entre objectos e núcleos não estanques – falamos do Predomínio da Forma sobre o Ornamento e lá está a mesa de Anahory que simboliza, para Bárbara Coutinho, um desses traços austeros: “Uma contenção, uma crueza, uma ida à essência e estrutura do objecto que é muito marcante”. É ali que vemos também a Osaka, uma visão de António Garcia sobre a tradicional cadeira de assento e costas de couro e “uma peça que faz parte do ADN do design português” da forma “como ele a pensou”, repartida em pedaços. Testemunho da “inventividade” e “racionalismo”, diz a comissária, de um design que, tal como a arquitectura portuguesa, cresceu a fazer muito com pouco.

Ou falamos de Inteligência Prática e Sensibilidade pela Matéria, da cadeira de Raul Lino, que Bárbara Coutinho vê como muito do que o autor da tese sobre A Casa Portuguesa (1929). É quase um trono, brincamos, o couro pintado e os pináculos decorativos a dar-lhe imponência. Exemplo da “mestria das manufacturas, de uma inteligência prática” que também se vê no emblemático móvel Igor (1991), de Pedro Silva Dias, que foi do desenho à forma elíptica final trabalhado por artesãos. Não se andou à procura de uma marca, mas identificou-se nesta exposição um desejo: “A particularidade do gosto e do saber das manufacturas pode ser aquilo que nos pode afirmar com uma maior solidez em termos internacionais”.

E na cadeira de assento em buinho de Conceição Silva (1965), que está justaposta como uma santíssima trindade do design made in Portugal com duas outras, uma desenhada por Daciano da Costa e outra por Fernando Távora para a Casa de Ofir (1956), chegamos ao que está Entre o Popular e o Erudito. Que é a lógica. O popular, o banco Mocho com o seu furo no assento para facilitar o seu transporte, a resistência singela do buinho, “não é valorizado [no design português] pelo lado pitoresco ou decorativo”, avisa a comissária. Tenta-se sim “perceber qual é a sua identidade, qual é a sua força, porque se estruturou assim, e progredir a partir dele”.

A partir desta sexta-feira, mais de 150 peças de 76 autores vivem até 31 de Maio no piso 2 do museu lisboeta e outras 30 morarão na Aldeia Agrícola, em Paredes, até 17 de Maio. Apenas 18 peças pertencem à colecção Francisco Capelo ou a aquisições posteriores do Mude, sendo as restantes fruto de empréstimo – ainda assim, a responsável estima “fazer novas aquisições e doações que resultem desta exposição”.

Como se pronuncia design em português? está a ser pensada há mais de um ano pelo Mude, e acabou por se “realizar no âmbito do Art on Chairs”, explica Bárbara Coutinho sobre a iniciativa do município de Paredes que faz com que haja prolongamentos da mostra não só naquele importante pólo do mobiliário mas que também tenha ido uma versão “para grande divulgação” desta exposição, também comissariada pela directora do Mude, à Beijing Design Week no ano passado. Em Paredes inaugura-se esta sexta-feira uma mostra feita sobretudo de cerca de 30 peças de mobiliário “que trabalha ou remete para a madeira e do período 2000-14”, no âmbito de um protocolo que reparte os custos entre Paredes (Pequim, Paredes, catálogo futuro) e Lisboa (Mude) por cada uma das exposições. 

Como se pronuncia design em português? é uma exposição que, para o visitante regular do Mude, se constrói sobre as pistas deixadas pelas mostras dedicadas a inovadores do design português como Eduardo Afonso Dias ou António Garcia, entre outras, e que mostram essa genealogia da disciplina em Portugal – vêm da arquitectura, até das artes, são autodidactas, sofrem as consequências da industrialização tardia do país, da institucionalização ainda mais tardia da profissão de designer e seu ensino. Trabalham para o Estado e para privados, mobilam-nos as estantes, as casas, as gavetas dos talheres, vestem os hotéis com as melhores cores. É por isso que aqui estão 60 anos de design português, explica a comissária, apesar de haver um maior foco no período pós-1980. “Tem a ver com a afirmação, nos anos 1950, dos grandes pioneiros do design com uma cultura mais contemporânea, uma cultura de projecto.” 

Bárbara Coutinho acrescenta que esta exposição “não poderia ter sido feita no primeiro ou segundo ano do Mude. Nasce de uma maturação sobre o tema e de um conhecimento mais aprofundado do que foi feito em Portugal nos últimos anos”, como o candeeiro de pé compenetradamente recto Branches, de Miguel Vieira Baptista (2014). No piso 2 do Mude, ele convive com a taça Furo (2011) de Fernando Brízio, com o Espelho de Canto (2011) de Filipe Alarcão e com as cadeiras Pirson (2010) de Miguel Rios, membros de uma geração herdeira do papel da Loja da Atalaia na divulgação do design de autor na década de 1980 portuguesa, uma das instituições evocadas na exposição, bem como eventos ou instituições como o extinto Centro Português de Design ou a II Exposição do Design Português onde esteve o quase desconhecido Jogo de Xadrez (1973), de Carlos Galamba, pensado e feito a partir do cilindro.

A mostra também se constrói sobre pesquisa, pedidos e as inexistências do design português. Ou seja, “havia peças fundamentais de autores em pleno da actividade que já não dispunham delas” - só havia o protótipo, foram vendidas, eram únicas -, resultado de uma “produção muito reduzida”, diz Bárbara Coutinho, exemplo das “dificuldades demonstrativas dos problemas do nosso design”. A eternamente apontada falha de comunicação entre o tecido empresarial e o design enquanto produtor de soluções e valor acrescentado. A sequência de peças que se vêem no Mude e em Paredes está repleta de ícones – a cadeira de todas as esplanadas, a Gonçalo (1950s) de Gonçalo Rocha dos Santos, as malas La.Ga (2002) de Jorge Moita e Daniela Pais que ocuparam os ombros da década passada ou as cadeiras empilháveis (1962) de Sena da Silva – e de peças especiais -, uma Mesa de café do artista plástico José Pedro Croft (1992), um dos cinco pins Cubo do também artista Pedro Calapez, a cadeira Shell (2009) de Marco Sousa Santos, o candeeiro Light de Rita Filipe ou a cortiça negra do banco iConfess (2013), peça única munida de iPads de Bruno Carvalho. “São peças de bom design em qualquer país”, frisa Bárbara Coutinho. Algumas são fruto de parcerias com a indústria ou de iniciativas projectuais como as realizadas pela Atlantis, pelo Projecto Remix, pela Amorim, entre outros e bons exemplos em que também se incluem Mglass, ProtoDesign, Sátira design, edições ExperimentaDesign/DesignWise.

O problema desta relação episódica indústria/design é mesmo a “falta de continuidade”, defende a comissária, mas também uma questão de “produção e de consumo: [é preciso] haver um mercado para estas peças e haver produção para motivar o mercado”, além de urgir “outra consciencialização dos próprios designers sobre o que é o mercado e como chegar a ele”. Para tentar “não dizer o mesmo”, espera Bárbara Coutinho, o Mude vai organizar conversas públicas com designers e empresas, além de estar a trabalhar numa exposição sobre o design da língua portuguesa, a prática na diáspora, as influências africanas, do Brasil, e vice-versa, além da itinerância de Como se pronuncia design em português?

O trabalho sobre o design português vai continuar este ano no Mude com a previsão de uma “grande exposição em Outubro dedicada a Álvaro Siza”, revela Bárbara Coutinho, outra sobre os 70 anos da TAP e sua imagem e uma mostra dedicada a José Espinho.

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