Alô, daqui é da guerra...

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Nem morto nem moribundo, mas vivo: assim é o teatro de revista que regressa ao Dona Maria pelo Teatro Praga. Nem revisitação nem reconstrução. O país ri-se de si mesmo mostrando o colete à provas de balas que o fez, e que o faz sobreviver

Portugal nas trincheiras. Visto da plateia do Dona Maria II, a trincheira onde o Teatro Praga instalou (até 16 de Março) a sua Tropa-Fandanga, é um lugar forrado a dourado, como o plástico que alguns têm em casa para salvar as cadeiras dos rabos que se arrastam ao longo dos anos. No caso, o regresso da revista ao Nacional é também um modo inusitado de pensar o Portugal contemporâneo a partir de um esquema de composição secular e estrito com o qual os portugueses lidam mal apesar de lhes ser tão umbilical.

Cem anos depois da I Guerra, 40 sobre o fim da guerra colonial e o 25 de Abril, quase 30 sobre a entrada de Portugal na CEE e 22 após a última vez que a teatro do Estado abriu as portas à revista (Passa por mim no Rossio), Tropa-Fandanga “é 2014 a rever 2013 ou 1914 a rever 1913?” Para o Teatro Praga é mais do que uma revisitação, uma reconstrução ou uma apropriação. É o mais difícil exercício a que alguma vez se sujeitaram. E, por isso, ao fim de duas horas e meia de espectáculo os dourados que forram o palco do Nacional são a única coisa que guarda a compostura, como as cadeiras da sala que sobrevivem sempre ao cansaço dos que nelas se sentam. Os actores, esses, vestidos de chita com padrões que lembram os sofás também eles forrados, cruzam o palco guardando ainda com brio a experiência – física, emocional, inventiva – que parece a antítese do que seria admissível num Teatro Nacional, a antítese do cinismo habitual do Teatro Praga e, benzamo-nos, o contrário do próprio teatro de revista que há muito se esqueceu do que já foi: sagaz, ácido, mordaz, crítico, vil, denunciador, conspirador e, no fundo, igual ao que de mais profundo somos, intensamente utópicos.

Ver Portugal, em ano de tantas celebrações, pela revista é uma provocação. Mas não é mais provocatório do que a realidade, ou a realidade que o teatro faz passar quando se esconde na metáfora. Em 1971, estava a revista a procurar modos de se reinventar, convocando métodos de composição que conseguissem aproximar um género popular das estéticas em voga, e escrevia Luís Miguel Cintra, actor, encenador, prestes a formar o Teatro da Cornucópia, no jornal Crítica: “A revista é, e reconhece-o, um espectáculo de teatro mas um espectáculo à parte. E o que faz dela um espectáculo à parte (…) e a continuar a chamar-se teatro, é a admirável maneira como usa os processos de teatro que uma vez adoptou, para se negar a si própria, para se negar, para se tornar supérflua, para se anular. (…) Preocupam-se os outros teatros – o teatro sério, o teatro declamado – em justificar tudo isto, uma ideia qualquer que venha dar significado, a essas estranhas coisas que todas as noites os senhores artistas vêm fazer ao palco. (…) E por isso passa o teatro declamado todo o tempo a pôr-se em causa (e quando tantas vezes o não faz é por inconsciência e trafulhice). Só a revista pode esquecer-se de meditar sobre si.”

José Raposo, o actor convidado – o Zé, aquele a quem [spoiler alert] se entregam as espingardas no fim, como se carregasse às costas o peso da falência que os outros não reconhecem – admite que sendo um género genuinamente português, o teatro de revista “tem tudo a ver com características que são nossas e que se foram perdendo”. E não houve passagem de testemunho de um humor ligeiro, reactivo, de graça fácil certamente, mas, segundo Raposo, “um humor que não se pode explicar”. Mas que, no interior da sua indefinição, guarda, provavelmente, a razão para o modo desconfiado como para ele olhamos. Raposo arrisca: “Temos vergonha dele”. E, no entanto, “muitas das pessoas que criticam o trocadilho à portuguesa, depois, na vida real, usam-no diariamente, sem problemas.”

Enfiados nas regras

É fácil afirmar que a revista, enquanto género, está morta: o país mudou, a censura acabou, as graças não precisam de metáforas, a sofisticação que se hoje se pede lida mal com um género que parece feito de facilitismos linguísticos e sequências reactivas e efémeras...

Não é de hoje. Já em 1926, Reinaldo Ferreira, o Repórter X, escrevia que “em Portugal não se evoluiu na revista, nem se respeitou a tradição; ou antes: deu-se um paradoxo – evoluímos no que devia servir de modelo fixo, e conservámos fixo o que devia evoluir”.

Explicava Luís Francisco Rebello em História do Teatro de Revista em Portugal (1985, Dom Quixote – pede-se nova edição de um duplo volume há muito esgotado) que para a revista o século XX foi um desafio manipulador, restritivo e estimulante. “A censura, particularmente severa no período que decorreu de 1933, o ano da institucionalização do corporativismo fascista (com a promulgação do Estatuto do Trabalho Nacional e da Nova Constituição), até ao fim da guerra de 1939-1945, velava no sentido de impedir as veleidades críticas dos autores em tudo o que de perto ou de longe se relacionasse com a política oficial. Nação, Estado e Governo identificavam-se obrigatoriamente: criticar este, discutir aquele era atentar contra a soberania e a integridade da Nação. Desse condicionalismo se ressentiu toda a produção revisteira da época – e continuaria a ressentir-se até 1974”.

Na pressa ufana a que nos dedicamos na determinação da causa da morte, olhamos para o Maria Vitória, o Teatro Politeama e, agora, o Nacional, e vemos hordas de criativos – actores, encenadores, compositores, músicos, bailarinos e técnicos – a inventar formas de tornar discreta essa sobrevivência.

Tropa-Fandanga ao repensar isso repensa o país sem ceder num texto reactivo e, por isso, efémero. É esse o truque. Repensa esse dilema através de um fio condutor – a guerra – que lhe permite ganhar em coerência dramatúrgica o que poderia ser um pecadilho mortal. A graça está na capacidade de integração de números de revistas anteriores – entre eles o célebre Ida à Guerra, de 1961, estreado em Bate o Pé por Raúl Solnado e recriado por José Raposo – num esquema formal, com os seus números peripatéticos, musicais, de comentário político, de travestismo, chamando o fado, Lisboa, a rivalidade entre o que é antigo e moderno e a marcha final. E depois é como na Tourada, que também cantam: entram coristas e soldados, escritores e fadistas, misóginos e futebolistas, entram velhas, doidas e turistas, mais galifões de crista com planos para o país, entram moralistas, frustrações, uma santa num andor, um deus ex-maquina, tiros de metralhadora, telões pintados por artistas que fazem da tristeza graça pegando o mundo pelos cornos da desgraça do país que somos – fomos, seremos?

Raposo vê nos Praga uma “humildade em reconhecer a dificuldade do género” e orgulha-se de participar nesta visão despreconceituosa. Dizia Pedro Penim, do Teatro Praga: “Sempre trabalhámos com as limitações do género, conscientes do espaço que estamos a ocupar, da tradição em que nos inserimos, dos espaços que ocupamos, das instituições que nos financiam. Com o tempo talvez tenhamos mudado a nossa atitude em relação a esses limites. No princípio do Teatro Praga, trabalhava-se em reacção. Hoje, não nos levamos tão a sério. E regozijamo-nos com as fronteiras e com as regras. E isto não é uma postura conservadora nem conformista. É só estar contra a ideia, muitas vezes defendida pelos artistas de um modo quase inocente, de que quem faz um objecto artístico está num outro lugar, ocupa uma posição privilegiada de onde consegue observar o mundo e assim esclarecer ou interromper a realidade em que se vive. Nós preferimos estar dentro do mundo. Enfiados nas regras até ao pescoço.”



Diálogo com os antepassados

Para os Praga esta incursão surge, então, como natural. “Houve sempre esse fascínio”, segundo Penim, para falar de um modo de pensar o teatro que procura a tradição e dialoga com os antepassados. “Volta e meia surge a necessidade de procuramos a nossa tradição, os nossos antepassados”. Dez anos depois de Título, a reformulação da máxima de Arno Gruen que os definiu ao longo de tanto tempo (“Substituir velhos deuses por falsos novos deuses significa uma libertação de ‘submissões antigas’ por ‘autoridades novas’”), dez anos depois daquele que, visto agora, foi de facto o primeiro espectáculo de revista que fizeram, Tropa Fandanga apresenta algo de novo. Se pode parecer uma declaração de guerra, é-o menos contra um inimigo (o teatro e aquilo que no seu microcosmos pode ser uma súmula do sistema social e político em que vivemos) e é mais um reconhecimento de um diálogo directo com a memória colectiva à qual os Praga nunca se furtaram. “Volta e meia surge a necessidade de procurar a nossa tradição, os nossos antepassados. E sempre tivemos essa dificuldade, a de nos conseguirmos incluir numa linha. Fomos sendo empurrados para várias, como se fôssemos herdeiros da nova dança, ou da performance ou do teatro de texto ou do espectáculo musical pop”. Tropa-Fandanga é tudo isso mas, assume José Maria Vieira Mendes, um dos três directores da companhia, “a revista ganha sempre”. O que significa que o grupo só pode assumir um lugar de aprendiz e de cultor.

Faz um pino difí­cil entre a memória (chamando números anti­gos de revis­tas e retrabalhando-os numa lóg­ica que não esconde a neces­si­dade da leg­i­bil­i­dade, criando pontes com a memória colec­tiva) e esse teatro da restau­ração, ou de corte, que coin­cide com a chegada da com­pan­hia às grandes salas nacionais. Mas, como texto político que é, usa as referências comuns para per­gun­tar o que pode o teatro fazer quando se põe a tratar da memória. É, por coin­cidên­cia tem­po­ral, e porque pas­sam 100 anos sobre a 1ª Guerra, um texto que parece ter apren­dido com Odon von Hor­vath a obser­var não ape­nas o outro, mas o modo como o outro se observa. “Nada é mais útil ao sen­ti­mento de infinito do que a estu­pidez”, disse Hor­vath em Histórias dos Bosques de Viena. E no cuidado que existe entre não se ser nem gros­seiro nem demasi­ado auto-referencial, há na artic­u­lação entre música (Sér­gio God­inho, João Paulo Soares), texto (colec­tivo) e cenografia (José Capela) uma con­sciên­cia do momento his­tórico que o país atrav­essa. “Há neste espectáculo um eventual retrato do Portugal contemporâneo, como em qualquer revista”, começa por dizer Penim. Mas porque a companhia não sabe o que é nem está interessada em colocar essa pergunta, a “portugalidade” que dizem espalhar é de outra ordem. José Raposo, assumindo ter chegado sem conhecimento de causa ao discurso da companhia, fala de um desejo de diálogo que ultrapassa o gesto político. “Haverá um gesto, uma decisão política, no caso do Teatro Nacional, mas não no espectáculo”. E isso é novo.

O que fomos perdendo na relação umbilical que o país tinha com a revista, como género transgressor, transgressivo, é aqui recuperado não para uma revisitação saudosista mas para, diz José Maria Viera Mendes, “olhar de frente um género que sobreviveu à sua própria morte”. Não está vivo ou morto, assume a companhia. Existe para além do que dele se possa dizer e do que com ele se possa fazer. Como o país. Não é inocente que a acidez do texto nos iluda e nos faça sen­tir con­fortáveis. É quando nos rimos que as cadeiras se partem. Como se pudéssemos reescrever a boutade de Oscar Wilde: Estamos todos nas trincheiras mas só alguns é que dão tiros. 

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