Afinal o tempo fica, a gente é que vai passando

São uns Visões Úteis rejuvenescidos os que pisaram o palco do Teatro de Carlos Alberto nesta estreia de Biodegradáveis.

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O que este espectáculo mostra, entre outras coisas, é que ninguém lhes tira a sátira como arma e o riso para ajudar a respirar Susana Neves
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Susana Neves

Este espectáculo dos Visões Úteis encerra um ciclo “dedicado às questões do corpo”, como se enuncia no programa, que coincide com os vinte anos de actividade do grupo. As questões foram, em particular, o esforço físico, explorado em Biométricos (um percurso pela centro do Porto e uma instalação na galeria Mira, em Campanhã) e o envelhecimento, tema deste Biodegradáveis.

 De facto, são uns Visões rejuvenescidos os que pisaram o palco do Teatro de Carlos Alberto nesta estreia. Ana Vitorino e Carlos Costa parecem outros na presença de Catarina Ribeiro Santos e Cristovão Carvalheiro (actores do Porta 27, protegidos pelos Visões ao abrigo de um programa chamado “artistas associados” que vai na segunda edição). Os corpos são ágeis, as réplicas espontâneas, as interpretações fantasiosas.

“Parecem outros” é força de expressão. São eles, mesmo, eles, sem tirar nem pôr. A transformação em palco, seja de veteranos, seja de jovens, famosos ou desconhecidos, não cessa de deslumbrar. A actuação é pessoal, ao ponto de confundir o espectador sobre os limites convencionais da ficção e realidade, como não pode deixar de ser sempre que actuação é boa. Além disso, ter sangue novo, num espectáculo sobre envelhecimento, é meio caminho andado. A passagem do tempo fica à vista, sem que seja preciso dizer mais nada, desde logo dada pelo contraste de idades. A metade amputada dos Visões, onde andará? Quem souber, verá a passagem do tempo, que este espectáculo assinala, ainda com outros olhos, misto de nostalgia e saudades do futuro. Todo o espectáculo “fala” sobre envelhecimento, independentemente do que diz sobre o tema.

A peça é um mosaico de estilos, géneros e convenções, vertida, com sentido da cena e habilidade verbal, em pequenos quadros, a maior parte cómicos, com o ocasional soco no estômago. Versando situações em que a vida quotidiana se cruza com os conhecimentos médicos, científicos e filosóficos, o espectáculo apresenta episódios onde o comum dos mortais tropeça com os senhores doutores, ou vice-versa. Os discursos normativos são passados a ferro na tábua da ironia. Ratos Unidos em Greve é uma pérola de auto-depreciação, jogada com fantasia. O número das vísceras, mudo, é delirante. A escolha do vinho ou do género da criança, à la carte, delicia. Tudo sketches que não se verão na televisão.

Algumas cenas têm o gume menos afiado mas o espectáculo cumpre muito bem os objectivos a que se propôs, e teria certamente a avaliação máxima dos painéis internacionais que julgam os centros de investigação, se não fosse precisamente um meio de se furtar a juízos tendenciosos disfarçados de imparciais. As artes, a educação e a ciência são vítimas, por igual, da austeridade, como é qualquer pessoa que tenha de sobreviver neste canto da Europa.

O que este espectáculo mostra, entre outras coisas, é que ninguém lhes tira a sátira como arma e o riso para ajudar a respirar. Os Visões Úteis não se deixam iludir: não estão cheios de si mesmos, nem com pena de si próprios. Talvez a frescura deste espectáculo venha também desse facto: sabemos que no, longo prazo, estamos todos mortos.

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