A História que as exposições contam

A mexicana Mariana Castillo Debball encerra a actividade da Kunsthalle Lissabon na Avenida da Liberdade

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A artista intervém sobre livros de museu para afirmar que toda a História, até a da arte, é ideológica Bruno Lopes

Durante oito anos, muito perto do Marquês de Pombal, em Lisboa, o número 211 da Avenida da Liberdade foi sinónimo de arte contemporânea jovem. Aqui funcionou (e ainda funciona, até ao fim do mês) a Kunsthalle Lissabon que, sob a direção de João Mourão e Luís Silva, apresentou incansavelmente um leque invejável de jovens artistas portugueses e estrangeiros. Mesmo ao lado, a Parkour desenvolveu durante este tempo uma programação não menos interessante. O prédio, decrépito, pertencia ao BES, que o cedia graciosamente a artistas e curadores. António Bolota, que também é artista, era a “alma” do “211”, como era conhecido. Todos os outros andares do edifício estavam ocupados por ateliers. Na cave, acabara de inaugurar antes do Verão um espaço para exposições colectivas de jovens licenciados. “Tinha programação feita para mais de um ano”, comenta este, pesaroso.

As vicissitudes do BES são conhecidas e, como era previsível, a instituição que o substituiu reclamou o edifício. A Kunsthalle, que já encontrou novo local perto de Santa Apolónia, encerrará aqui a sua actividade no final do mês, data em que todos os artistas e curadores terão de desocupar o prédio. A individual de Mariana Castillo Deball, que agora decorre, será por isso a última a beneficiar da sala de canto da Avenida da Liberdade, a última também a poder acentuar o contraste entre os lindíssimos estuques de tecto oitocentistas e a arte contemporânea e a captar os cruzamentos de público que a proximidade das duas instituições — Parkour e Kunsthalle — sempre fomentou.

Mas concentremo-nos na exposição. A artista é de origem mexicana e vive em Berlim há anos. Para a exposição em Lisboa, que intitulou Moi-Peau, apropriou-se do conceito com o mesmo nome criado pelo psicanalista francês Didier Anzieu. Segundo este, o eu constrói-se pela “projecção da psique na superfície do corpo”. A pele funciona assim como uma membrana que divide os estímulos externos dos internos, e que podemos encontrar, metaforizada, na escultura de tecto que a artista montou numa das salas da exposição. Esta, um dos Uncomfortable objects que Mariana Castillo Deball tem desenvolvido, é constituída pela multiplicação de formas orgânicas coloridas, feitas de papier mâché, em tons vermelhos, e contrapõe-se a um conjunto de objectos significativamente diferentes expostos na segunda sala. Do ut des, o título genérico destes objectos, compõe-se de uma série de livros sobre museus editados pelo brasileiro Eugênio Hirsch. Os livros, que acusam a época em que foram concebidos, possuem a originalidade de incluir fotografias do dia-a-dia do museu. Visitantes, o trabalho dos técnicos e, em geral, pontos de vista totalmente inabituais em volumes que não pretendem outra coisa se não dar a ver uma colecção de obras artísticas asséptica e moderna, introduzem-nos num modo de dar a ver a arte que é já contemporâneo.

Estes livros foram depois intervencionados pela artista, que perfurou orifícios concêntricos na espessura das páginas, destruindo simultaneamente a leitura pretendida pelo autor e centrando a atenção na própria matéria do livro. É que, mesmo contemporâneo, o conceito de livro de museu desenvolvido por Hirsch continua a ser uma forma pré-definida, autoritária e ocidental, que condiciona a visita a cada museu e, mesmo, o modo como a historiografia da arte é feito. É aqui que se concentra o ponto fulcral do trabalho de Mariana Castillo Deball: a História é sempre ideológica, mesmo a História da arte. E é pelo trabalho sobre a pele do livro (a superfície criada por cada página) que essa ideologia pode ser desmontada. A escultura de tecto, ela própria constituída por membranas frágeis, reforça esta linha de pensamento, embora de um modo mais convencional.

De resto, diz-nos uma nota de sala que a artista tem trabalhado as narrativas que pré-existem aos museus de arqueologia da América Central, o que não deixa decerto de acrescentar mais interesse ainda ao trabalho que aqui apresenta. O “eu-pele” referido no título incide aqui sobre o objecto artístico e no modo como, através da exposição e do modo de reprodução, ele contribui para manter um determinado discurso sobre a arte. Que vai muito além da exposição ou do livro, incluindo a cultura considerada no seu todo. 

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