Cinco exposições para se perceber que Europa é esta

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Primeira-ministra Margaret Thatcher durante um congresso do Partido Conservador, em 1985 © Chris Steele-Perkins/Magnum Photos
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Carnaval, Antuérpia, 1992 © Harry Gruyaert/Magnum Photos
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Helen e o hula-hoop, praia de Seacoal, Lynemouth, Northumbria, Reino Unido, 1984 © Chris Killip
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Bever, Skinningrove, 1981 © Chris Killip
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Southampton, 1984 (da série 12 Day Journey © Peter Fraser/cortesia do artista
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Cheddar No 5, 1985-86, da série Everyday Icons © Peter Fraser/cortesia do artista
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Sem título, da série At Dusk, 1993 © Boris Mikhaïlov/Cortesia Galerie Suzanne Tarasieve, Paris
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Sem título, da série At Dusk, 1993 © Boris Mikhaïlov/Cortesia Galerie Suzanne Tarasieve, Paris

#01. Na década do no future

As paredes da sala de exposições do Círculo de Belas Artes têm muitos mapas, fronteiras e geografias, mas há uma divisão alternativa, mais emotiva e sensorial, que talvez nos ajude a entrar melhor na década de 80, os dez anos que “transtornaram” a Europa de maneira tão forte que ainda hoje podemos sentir as suas ondas de choque. Em Transiciones podemos esquecer as linhas divisórias e deixarmo-nos guiar apenas pelo carácter mais impressivo das imagens. É uma leitura através da qual podemos estabelecer três tipos de aproximações (ou tantas quantas se quiser): a primeira, feérica e íntima, a segunda, frívola e clínica, e a terceira, experimental e à deriva.

Os fotógrafos ingleses são os que mais estão dentro da primeira e fazem um uso da cor não apenas como opção pictórica ou formal, mas como um mecanismo de verdade que tanto serve para captar o consumo desenfreado das classes médias e estâncias balneares decadentes que frequentam (Martin Parr e Tom Wood), como para entrar na intimidade e nos momentos (e objectos) mais banais do quotidiano (Peter Fraser). O belga Harry Gruyaert e o ucraniano Boris Mikhaïlov podem juntar-se a esta família, o primeiro com um caleidoscópio de cores que esconde “uma armadilha de tristeza”, o segundo com Suzi et cetera, uma série que tenta apanhar os sinais de uma vida soviética em desmoronamento. Os fotógrafos alemães formam o maior contingente de uma aproximação à imagem fotográfica com uma neutralidade emocional e uma obediência incondicional à actividade documental do fotógrafo. Da chamada “escola de Düsseldorf” encontramos alguns dos seus maiores protagonistas, desde os professores que estiveram na sua origem, o casal Becher, até Candida Höffer (e a presença turca na Alemanha) e Joachim Brohm (com as paisagens “sem qualidades”). Laurenz Berges (aluno tardio de Düsseldorf) é alguém que procura ler a paisagem “através de um elemento singular que parece ter sido extraviado”.

Por último, terceira aproximação, podemos fazer ziguezague entre as fotografias de Serguey Chilikov (que nos mostra como as pessoas e as políticas mudam depressa, ao contrário dos lugares e dos símbolos) e o “devaneio” fotográfico do inglês Chris Steele-Perkins, que apenas com um retrato de Margaret Thatcher durante um congresso do Partido Conservador, em 1985, nos dá todo o programa de uma década (a promessa de prosperidade, o sucesso político, a integração de minorias nos momentos de decisão…).

Os anos 80 foram “paradoxais” com avanços e recuos em sectores fundamentais da vida em sociedade. Muitos dos fotógrafos europeus que registaram esse tempo anteviram o colapso de uma sociedade baseada no antigo modelo industrial. E nas paisagens que nos deixaram, “oculta-se, como um desenho na tela de um tapete, a história da transição até à crise do capitalismo mundial”.

 

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Antoine d’Agata/Magnum Photos

#02. Para um mundo complexo, imagens complexas

¡A las puertas del paraíso! é a exposição do PhotoEspaña que mais nos diz sobre o que está a acontecer hoje na Europa. E, no entanto, não procura fotografias de actualidade. Na verdade, a postura dos comissários foi fugir delas o mais possível. “Nas fronteiras da Europa reúnem-se hoje dois colectivos cujo destino está ligado: os migrantes e os fotógrafos. Os primeiro procuram escapar à pobreza, à guerra e à repressão. Os segundos persistem na sua capacidade de captar imagens significativas ou reveladoras.” Ora, François Cheval e Haudrey Hoareau quiseram mostrar olhares capazes de construir “uma imagem comprometida” com este drama. E avisaram que só era possível consegui-lo se os fotógrafos ou artistas visuais envolvidos na exposição devolvessem à fotografia não só a sua capacidade de experimentar política e socialmente, bem como aceitar a mistura e contaminação de outros suportes.

Na apresentação, Cheval já tinha dado o mote, mas foi ainda mais incisivo quando chegou o momento de se colocar ao lado da instalação do fotógrafo francês da Magnum Antoine d’Agata. Aí o comissário foi directo ao assunto: “Esta peça é uma posição programática sobre o papel da fotografia hoje em dia. Ou seja, é um manifesto antifotojornalístico. Nestes lugares as câmaras de segurança fazem o trabalho do fotojornalista”. Para Cheval, que dirige o museu Nicéphore Nièpce, os fotógrafos que ambicionam um trabalho “implicado” precisam de aceitar que as suas imagens “já não falam sozinhas”. “Podemos ver fotografias de meninos mortos na praia, mas isso não muda nada. Queima-nos os olhos, mais nada.”

Para construir Odysseia, D’Agata passou dois anos em pontos de chegada de migrantes à Europa, vivendo nas tendas com eles à espera que algo acontecesse. À semelhança da estratégia visual multidisciplicar seguida pelo fotógrafo francês — conhecido por incluir a sua experiência pessoal e íntima no trabalho — Cheval defendeu que é preciso fazer cada vez mais trabalhos que utilizem imagens fixas, imagens em movimento, textos e palavras em diferentes situações. Porque “não é uma imagem que muda o mundo, é talvez a relação entre várias coisas”. “O mundo é complexo. É preciso complexificar para o compreender.”

Foi também isso que fizeram o espanhol Juan Valbuena, com Salitre (um conjunto de doze cadernos construídos por migrantes que relatam a sua experiência de vida e integração), e Annick, que conseguiu convencer vários migrantes a enfiarem uma máscara de pássaro, numa alusão aos bandos de aves migratórias que se reúnem nos mesmos portos que os migrantes. Quando ouviu na rádio a notícia do primeiro grande naufrágio mediatizado na costa de Lampedusa, Annick não consegui deixar de pensar: “Os pássaros conseguem fazer mais facilmente esta travessia do que os humanos”.

 

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Juergen Teller

#03. Onde está o selfie?

Uma das coisas que mais espanta depois de se percorrer Fotografía de Retrato en Europa desde 1990 é que não exista nada que mostre a forma de retrato mais presente, global e epidérmica dos últimos anos: a selfie. Há muito que o fenómeno deixou de ser “fotográfico” (é sobretudo comercial, psicológico, social, judicial…), mas a força com que se implantou na cultura visual contemporânea mereceria algum tipo de reflexão. Talvez por perceber que esse buraco seria fatalmente notado o comissário da exposição, Frits Gierstberg, começou a apresentação no CentroCentro Cibeles de Madrid por aí: “O retrato fotográfico não foi tratado convenientemente nos últimos dez ou quinze anos. Não queremos fazer uma exposição de género. Queremos compreender o fenómeno da popularidade do retrato. Hoje temos selfies por todo lado. E quando nos perguntamos porque as fazem as pessoas e porque as trocam de forma ininterrupta a resposta está relacionada com o acesso à internet e com questões relacionadas com identidade. Este mundo não está presente nesta exposição. Preferimos dar o contexto em que este fenómeno começou e existe”. A explicação não é totalmente convincente, já que reconhece ao selfie uma importância fundamental nos dias de hoje ao mesmo tempo que lhe recusa uma presença criativa (física e não apenas em teoria) capaz de problematizar in loco o fenómeno.

Apesar de apontar o surgimento e implantação da internet, no início dos anos 90, como um dos factores que mais contribuíram para a construção dos novos conceitos de identidade no espaço europeu, a exposição comissariada por Gierstberg não chega a abordar de forma consequente esse pressuposto. Mais apostada em preencher o vazio que, segundo este comissário, existe na compreensão da evolução do retrato nas últimas décadas, a mostra do CentroCentro põe lado a lado alguns dos autores mais marcantes que cultivaram (e cultivam) este género. Nesse esforço foi identificada uma tendência que se centra no indivíduo em relação ao seu meio social e cultural, onde a globalização, a migração, a internet e a unificação económica jogam um papel fundamental. 

Ao longo das salas, as imagens foram organizadas segundo vários grupos: Privado e Público; Formal e Informal; Cultura e Lugar; Tradição e Inovação; Identidade Dentro do Grupo; A pose e a Perspectiva Humana; O Rosto como Máscara; Tabula Rasa. Neste último ganha especial importância a série tipológica de retratos de Thomas Ruff que, no final dos anos 80, decidiu dinamitar o que até aí se tinha feito no género. Naquilo que parece uma colecção de fotografias tipo passe (são amigos de Ruff), existe uma tentativa de despojar o retrato do máximo de ruído com o intuito de o transformar numa imagem visual pura. Para Gierstberg, foi a partir deste trabalho que muitos outros fotógrafos procuram novas formas e novas perspectivas para o género durante os últimos 25 anos.

 

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Bernard Plossu
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Bernard Plossu

#04. A hora má (ou boa)

Há quem diga que é possível ver fotografias de Bernard Plossu em qualquer altura e sem parar, que são viciantes, tão cheias de nada e de tudo. Depois de sairmos da sala do Jardim Botânico de Madrid onde decorreu a inauguração de La Hora Inmóvil, tendemos a concordar — apetecia voltar e começar a ver uma e outra vez as inquietantes paisagens que o fotógrafo francês reuniu para o PhotoEspaña. Não que a fotografia de Plossu se construa em círculos repetitivos, como um white noise que nos entorpece os sentidos. Mas a maneira como consegue captar momentos expectantes, suspensos, alimentam-nos uma vontade de estar no meio deles, de compreender o que aconteceu e o que vai acontecer, uma vontade de experimentar a tensão que resulta da procura de lugares que nos são familiares e misteriosos ao mesmo tempo.

Para esta exposição, o mestre francês selecionou cerca de uma centena de imagens do Mediterrâneo, um território a que voltou regularmente nos últimos trinta anos e que, como a sua fotografia mostra, vai muito para além da geografia. Em muitos lugares de Espanha, França, Itália e Grécia (Plossu é um viajante insaciável), procurou dar-nos conta desse diálogo que manteve com a metafísica do Mediterrâneo, aqueles lugares áridos, semi-desertos, vagos e silenciosos. São lugares flutuantes, entre o real e o imaginado, muitas vezes captados na hora inmóvil (quando o Sol está a pique), os piores momentos para o controlo da luz na fotografia, mas os melhores para Plossu na descoberta de novas paisagens e formas. É nessa ambiência esbranquiçada que o fotógrafo procurar injectar uma aura de mistério, como se nada estivesse totalmente resolvido ou alguma coisa estivesse permanentemente por acontecer. Estes “instantes de transição” às vezes convertem-se em “passagens entre dois mundos, duas consciências” (Ricardo Vázquez). O choque de universos (tão querido aos surrealistas) encontra nestas imagens campo fértil. É Plossu a citar directamente artistas como Giorgio De Chirico (e as suas pinturas metafísicas).

Se não se estiver atento mal se dá pela fotografia de Bernard Plossu, um fotógrafo sereno e subtil, que deixa os traços da sua personalidade flanêur de pantufas nas suas imagens poéticas e metafísicas. Certo é que ele dá pelo mundo. E procura ver muito para lá dele, do que é visível, entendível ou palpável. Procura dar-nos portas para passarmos para o outro lado do espelho.

 

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Lurdes R. Basolí
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Inge Morath

#05. Inge Morath como exemplo

Aquilo que podia transformar-se num espartilho tornou-se num exercício de liberdade e devaneio. Seguir as pisadas de outro terá mais peso na fotografia do que nas noutras formas de expressão criativa onde, porventura, é mais fácil sair do campo do real, do que foi feito e fixado, de como era e quem se encontrou pelo caminho. Três fotógrafas alimentaram uma ideia, juntaram mais uma ao grupo e estas convidaram mais quatro a percorrer o rio Danúbio na senda do que fez Inge Morath (Áustria, 1923 – EUA, 2002), em dois períodos muito diferentes do contexto europeu (1955 e 1993).

Talvez por sentirem esse peso da imagem no que fariam a seguir, os diários de Inge e a sua escrita acabaram ser fiéis companheiros de viagem de algumas destas fotógrafas, todas vencedoras do prémio Inge Morath, a primeira mulher a juntar-se à cooperativa de fotografia Magnum, em 1955, pela mão de Henri Cartier-Bresson, de quem foi assistente. Na apresentação da exposição, duas das oito autoras garantiram que a fotógrafa de origem austríaca era “tão boa escritora quanto fotógrafa” e sublinharam a importância desta entrada no seu mundo secreto para a compreensão da sua personalidade e das escolhas que fez no mítico trajecto, que começou em meados da década de 1950 e que, depois de uma interrupção, só foi concluído quase quarenta anos depois (a cortina de ferro impediu-a de se deslocar a vários países).

Com a intenção de homenagear o papel de Morath na afirmação do trabalho das mulheres fotógrafas num meio dominado por homens e de dar a conhecer um núcleo de imagens referencial na sua obra, as oito fotógrafas começaram a viagem na nascente do Danúbio, na Floresta Negra, na Alemanha, no Verão de 2014, e terminaram-na, 34 dias depois, na desembocadura do rio, no Mar Negro, que banha a Roménia. A simples reunião em torno de uma ideia e a vontade de a concretizar em conjunto marcou o grupo, que incluiu fotógrafas de várias nacionalidades, algumas das quais não se conheciam. “Não é assim tão comum haver este tipo de colaboração entre fotógrafos. Quando pensamos o que fazer, chegamos à conclusão que tinham de ser abordagens totalmente livres e esse foi um dos principais motores para que o trabalho pudesse chegar ao fim”, contou a australiana Claire Martin.

Misturadas com 60 fotografias de Inge Morath, os oito núcleos de imagens que resultaram desta road trip revelam a imensa complexidade de um território transfronteiriço ligado pelo serpentear do Danúbio (o rio passa por várias capitais da Europa e é a fronteira natural de dez países). Embora marcados por uma aproximação documental, em todos os trabalhos há a tentativa de explorar camadas mais poéticas, românticas, alegóricas e místicas. O resultado de uma ideia que muitos consideraram “irrealizável”, alimenta um diálogo enérgico entre o passado e o presente através de um acidente geográfico que representa uma das quintessências da simbologia europeia – o Danúbio.

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