2012: Ano bom para ver os The Cure

Os The Cure deram um concerto de três horas
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Os The Cure deram um concerto de três horas Nuno Ferreira Santos
Os Morcheeba foram os substitutos de Florence and the Machine
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Os Morcheeba foram os substitutos de Florence and the Machine Nuno Ferreira Santos
Tricky partilhou o palco com o público
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Tricky partilhou o palco com o público Nuno Ferreira Santos

Num Optimus Alive cada vez mais um festival de atracção internacional – são dezenas as nacionalidades a distribuir por vários milhares de espectadores importados –, a segunda noite ficou marcada por um belo regresso dos The Cure a Portugal e por dois monumentais concertos de Lisa Hannigan e The Antlers.

Estava lá, discreta, colada na guitarra de Robert Smith: “2012: citizens not subjects”. Desde Woody Guthrie e a sua famosa “this machine kill fascists” que a guitarra, mesmo silenciosamente, tem dado corpo à manifestação política. Ontem, com os The Cure, no Alive, a política ficou-se por aí, num longo concerto de três horas que ajudou a esquecer a má memória da passagem pelo Sudoeste em 2002. Nessa altura, a insistência em novo reportório e em momentos mais obscuros da sua carreira abrira um fosso entre o público festivaleiro e a legião de fiéis: os primeiros bocejaram de tédio, os segundos deliraram como sempre. “2012: inteligentes não displicentes”, assim foram os The Cure de sábado no Alive, gerindo melhor esse equilíbrio e só episodicamente perdendo a mão no rumo do concerto.

Logo com o trio de arranque, resgatado ao clássico "Disintegration" ("Plainsong", "Pictures of You" e "Lullaby"), estava claro que a pop gótica e encharcada em melancolia de Robert Smith não se transformara num penoso espelho do passado. A voz de Smith, aliás, soa hoje tal como há 20 anos. A primeira hora de concerto passou ainda por "High", "Mint Car", "In Between Days" e "Just Like Heaven", e nessa mesma sequência, "Lovesong" (também de "Disintegration") ressoaria a confissão emocionada ao ouvirmos Smith cantar “you make feel like I’m young again”. Passada essa primeira viagem por alguns dos melhores momentos da banda, a intensidade começava a esbater-se. Instalava-se, temporariamente, um torpor bastante familiar do palco principal naquele dia.

Os Morcheeba, repescados à última hora para substituir as cordas vocais adoentadas de Florence Welch e a sua Machine, tiveram o papel ingrato de subir ao palco com aquela postura acanhada de quem se apresenta numa festa sem ter sido convidado. Foi a escolha possível – não estando disponível outra seguidora de Kate Bush – dentro de uma pop realmente popular e em sentido lato, mas a actuação do grupo não descolou verdadeiramente, limitou-se a ser aquela coisa agradável e certinha, trip-hop, reggae e pop em versão delicodoce que sempre que lhes conhecemos. Decidimos então ir espreitar Tricky, carburador mor do trip-hop. Tricky apresentou-se, afinal, sem Martina Topley-Bird, a voz que o ajudara a pôr de pé o clássico "Maxinquaye" – a revisão integral do álbum era, aliás, o motivo primeiro para este concerto. Mas as voltas trocadas aos planos de Tricky não desnortearam o concerto. "Black Steel" apresentou-se garbosamente crua, "Ace of Spades" dos Motörhead foi alvo de uma interpretação de trituradora punk em ritmo de festa (com o palco subitamente ocupado por um público em delírio) e o homem de Bristol deixou claro que mesmo fazendo pouco mais do que mostrar o seu tronco desnudado e largar umas frases com voz de fim do mundo aqui e ali é o orquestrador de uma das mais fulgurantes obras da segunda metade dos anos 90. Um dia os blues foram isto. Esta carga ultra sensual e narcótica de música maquinal e vozes em estado de sobreexcitação sexual.

Se Florence Welch ficou de cama, mas por motivos menos arrebatados do que a música de Tricky instiga, o seu lugar de ruiva britânica encantatória foi ocupado por Lisa Hannigan, que abriu o palco secundário. Eram cinco da tarde, Hannigan entrou em palco e ninguém parecia ter dado por isso, mas pegou na guitarra e com uma rouquidão à frente da qual desenhamos uma seta que vai ter a Cat Power conquistou o público ao fim da primeira música. Caso raro da folk britânica surgida nos últimos anos, Hannigan parece quase uma Gillian Welch na forma como alia uma grande voz a interpretações com nervo, ardentes (pensar também em Kristin Hersh de Murder, Misery and then Goodnight), e uma alternância de sugestões pop e rock geridas brilhantemente, ao mesmo tempo que não deixa escapar um classicismo evocador de Maddy Prior ou Sandy Denny. Às tantas, entrevendo uma bandeira familiar no público, perguntou se havia mais irlandeses por ali. A resposta foi tão sonora que se percebeu o forte impacto do festival em terras britânicas neste momento. Quanto a Hannigan, tornou-se óbvio que terá de voltar, para uma sala em que a sua música soe ainda mais sedutora.

Também os nova-iorquinos Antlers, partindo de uma música de difícil apelo em contexto de festival, mostraram que não são tipos para se deixar intimidar por ouvidos desconhecidos. A sua pop desacelerada, hipnótica, psicadélica, um carrossel em marcha lenta procurando sistematicamente embarcar em espirais de beleza pura assente nos falsetes de Peter Silberman e das guitarras sempre em movimento circular, soa por vezes à pureza inicial dos Sigur Rós, outras ainda a um precioso digno sucessor de Jeff Buckley numa voz que arrepia em melodias claramente acima do solo. Hounds, como se previa, não deixou dúvida de que é das mais brilhantes (entre as muitas) canções a evocar Twin Peaks. Especialmente adequado para assistir ao sol a mergulhar no horizonte.

Por essa altura, mandava o bom senso que se conservasse alguma distância de segurança relativamente ao palco principal. Os Mumford and Sons foram exemplares a apresentar uma folk-pop-rock de absoluta vulgaridade, enquanto, pouco antes, Noah and the Whale tinham sido ligeiramente mais entusiasmantes convocando folk, música de pub, citações involuntárias e frequentes a Bruce Springsteen. Vestiam orgulhamente como se do contrato constasse a informação de que se tratava de concerto em casamento – algo que caiu especialmente bem ao baixista, espécie de sósia de Philip Seymour Hoffmann em Boogie Nights. Mas houve outros concertos sem grande história: We Trust, projecto do português André Tentugal, uma soul de hoje pouco convicta, mortiça, abusadora da palavra time por verso quadrado e a fazer render o relativo sucesso de "Time (Better Not Stop)"; Here We Go Magic, entre os Arcade Fire de som cheio e ambicioso, e as constantes cambalhotas estéticas (entre o sónico e o lírico) dos Broken Social Scene, mas sem o alcance de ambos; e Awolnation, um desconcertante e inacreditável composto de lugares comuns da música californiana, do rock galifão e com voz de “temos chatices”, a uma pop enjoada e um punk para passear o skate – tudo, por vezes, no espaço de segundos. Para esquecer.

De Katy B ouvimos-lhe apenas um magnífico registo r&b abraçado por batidas electrónicas gigantes, numa excelente versão de "Sweet Dreams (Are Made of This)". Foi um cumprir de curiosidade apenas para fazer uma pausa no concerto dos The Cure. Smith estava nessa altura a voltar a controlar o concerto, com "The Walk", "Friday I’m in Love" e uma sublime visita a "A Forest" que merecia ter sido o tema final do alinhamento. Arrastou-se mais um pouco, chegou às duas horas e a banda recolheu pela primeira vez. O primeiro encore, apenas com "The Same Deep Water as You", enganaria. O segundo trouxe uma selecção de luxo com "Dressing Up", "The Lovecats", "The Caterpillar", "Just One Kiss", "Close to Me", "Let’s Go to Bed", "Why Can’t it Be You" e "Boys Don’t Cry". Já teria terminado em beleza, mas a confirmação de que 2012 é um bom ano para se voltar a ver e ouvir os The Cure veio com o anúncio do segundo encore: “Não tocamos esta há 15 anos”. Esta era "10:15 Saturday Night". Não eram 10h15, eram já quase três da manhã. Mas a canção e a despedida em registo furioso do excelente "Killing an Arab" davam a Smith a legitimidade para escolher a hora que quisesse para sábado à noite. Depois disto, o composto house/soul/disco/funk a quatro mãos de James Murphy e Pat Mahoney pareceu até coisa de meninos.

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