Sophia de Mello Breyner no Panteão Nacional

Não são os poetas que precisam de nós. Somos nós que precisamos deles e das suas palavras de vida e de morte. Somos nós que necessitamos das suas acusações e das suas celebrações, das cóleras e dos êxtases, dos anátemas e dos louvores, das profanações e das sagrações. Somos nós que necessitamos desse voo da voz, dessa veemência da vida, desse fogo da fronte. Nos grandes poemas dos grandes poetas, o mundo - ou a sua recusa - está perante nós e ficamos à altura da sua altura.

Para Sophia de Mello Breyner, a poesia foi sempre a arte de não dizer nada que não fosse preciso dizer. Os seus poemas falam do humano e do divino, do caos e do cosmos, do próximo e do longínquo, da plenitude e do vazio, do reino e do exílio, da abundância e da fome, da felicidade e do terror. Falam da casa e do mundo, do jardim e do mar, da ânfora e do vinho, dos espelhos e do silêncio, das estátuas e da dança, das colunas e do vento, das ilhas e das navegações, da luz e da noite. Falam da beleza do mundo e do sofrimento dos homens, do tempo que foi e do tempo que é, daquele que nos é dado e daquele que nos é negado (“Quem me roubou o tempo que era um / quem me roubou o tempo que era meu”, último poema da Obra Poética).

As suas palavras têm a precisão minuciosa dos microscópios e o alcance majestoso dos telescópios. Com elas, somos o astronauta que atravessa a distância dos espaços e o miniaturista que desenha a exactidão dos tempos. Com elas, vemos o que olhamos, ouvimos o que escutamos, dizemos o que falamos.   

Antígona do século XX português, Sophia foi aquela “que não aprendeu a ceder aos desastres”. Debruçada sobre o tempo, como o rei Gaspar de um dos seus Contos Exemplares, nunca cessou de perguntar: “Que pode crescer dentro do tempo senão a justiça?” E, nesta pergunta, havia já uma resposta: “Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.// É por isso que a poesia é uma moral. É por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia.”,  Arte Poética III.

É por isso que a participação de Sophia na política se fez das mesmas perguntas e das mesmas respostas de que a sua poesia se faz. É por isso que a coragem de Sophia era uma ética e a sua lucidez um compromisso com o mundo e com os homens que o habitam. É por isso que a sua morte foi um momento de despedida, de descoberta, de despertar. Ao vermos que a morte não prevaleceu sobre a sua obra, aprendemos que somos os herdeiros da sua palavra, da sua nobreza, do seu desassombro.

Neste tempo que vivemos contra nós próprios (“A nossa vida é como um vestido que não cresceu connosco”), em que tudo parece decair como um sol cansado, precisamos de afirmar que, a seguir à noite, há o dia. E a voz de Sophia fala-nos disso como um anúncio: “Apesar das ruínas e da morte,/ Onde sempre acabou cada ilusão,/ A força dos meus sonhos é tão forte, / Que de tudo renasce a exaltação/ E nunca as minhas mãos ficam vazias” (primeiro poema da Obra Poética). 

Os dias da nossa vida tornaram-se sombras e fantasmas. Para que esses dias se tornem outros dias, não nos basta ouvir – repetidas, insistentes, incessantes, ameaçadoras – as palavras “cortes”, “crise”, “dívida”, “défice”, ”desperdício”, “ajustamento”, “resgate”, “assistência”, “medidas”, “cautelar”, “precarização”, “requalificações”, “mobilidade”. Precisamos de uma palavra mais limpa, de um olhar mais alto, de uma esperança mais viva. Como disse Mallarmé, no poema Le Tombeau d’ Edgar Poe, é preciso “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. Esse é o sentido da obra de Sophia. Nela, a vida e a poesia não se separaram nunca e foram liberdade livre e justiça justa. No que escreveu e no que viveu, passa esse sopro de inteireza, de verdade e de audácia que a tornou um símbolo para todos.

Em 2014, passam dez anos sobre a morte de Sophia e quarenta anos sobre a Revolução do 25 de Abril. É esta a boa data para que Portugal, através dos seus representantes, conceda a Sophia de Mello Breyner as honras de Panteão Nacional, prestando-lhe o tributo que merece e dando ao país o momento de uma restituição, de um reencontro, de um reconhecimento e de uma aliança com o seu futuro.

Do antigo ao moderno Panteão, num movimento que atravessa o tempo do Ocidente, os altares dos deuses deram lugar aos túmulos dos homens. Aí, se inscrevem os nomes das grandes figuras históricas, culturais e cívicas que se tornaram motivo de inspiração, de identificação, de renovação. Sophia tem essa dimensão, que faz dela a imagem de um país à altura de si-mesmo.

Nos nossos amargos dias, a desvalorização simbólica da vida colectiva acompanha o declínio da democracia e dos seus valores. É por isso que, no ano de 2014, em que todos os perigos se juntam a todos os medos, devemos fazer de Sophia e da sua fidelidade à promessa inicial do 25 de Abril um antídoto, para não termos nunca de voltar a dizer como ela disse em dias infames: “Este é o tempo / da selva mais obscura/ (…) Esta é a noite/ densa de chacais / Pesada de amargura / Este é o tempo em que os homens renunciam”. 

Tornada exemplo, sinal e testemunha, Sophia ensina-nos a não renunciar e a não recuar. Ensina-nos a recusar e a rejeitar. Ensina-nos “que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser”.

Ensina-nos a não aceitar “a fatalidade do mal”. Ensina-nos a olhar de frente “a sábia e tácita injustiça, a “longa tenebrosa e perita degradação das coisas”, os “conluios e negócios”, a “feroz ganância e fria possessão”, as “máscaras alibis e pretextos”, as “fintas, labirintos e contextos”, a “meticulosa eficaz expedita degradação da vida” (Nestes últimos tempos) – e a dizer não. Ensina-nos a acusar e a recusar “o desencontro/ O limiar e o linear perdidos // (…) A vida errada num país errado/ Novos ratos mostram a avidez antiga”.

Ensina-nos a perguntar: “Deverá tudo passar a ser passado/ Como projecto falhado e abandonado/ Como papel que se atira ao cesto/ Como abismo fracasso não esperança/ Ou poderemos enfrentar e superar/ Recomeçar a partir da página em branco/ Como escrita de poema obstinado?” (Os Erros). Ensina-nos a responder: “Porém restam/ Do quebrado projecto da sua empresa em ruína/ Canto e pranto clamor palavras harpas/ Que de geração em geração ecoam / Em contínua memória de um projecto/ Que sem cessar de novo tentaremos” (Projecto II). Ensina-nos a afirmar: “Sei que seria possível construir o mundo justo/ As cidades poderiam ser claras e lavadas/ (…) A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia/ Cada dia a cada um a liberdade e o reino” (A Forma Justa).

A lei 28/2000, de 29 de Novembro, que define e regula as Honras do Panteão Nacional diz: “As honras de Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignidade da pessoa humana e da causa da liberdade”.

A concessão, pela Assembleia da República, de honras de Panteão Nacional a Sophia de Mello Breyner não será apenas a homenagem justa e necessária à grande poeta, cujo poema sobre o 25 de Abril se tornou um texto fundador da nossa democracia (“Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”). Não será só o reconhecimento à mulher universal, à cidadã insubmissa, à deputada à Assembleia Constituinte, que acendeu na sua voz o fervor com que defendia uma liberdade fiel à poesia e à vida. Este tributo a Sophia será, agora e sempre, um alerta, um alarme e um aviso para não nos deixarmos vencer. Será também já o Sim que diremos depois do Não que dissermos. 

 
Escritor, assessor cultural dos Presidentes da República Mário Soares e Jorge Sampaio
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar