O nosso amigo alemão

Durante cinco anos, Joachim Bernauer dirigiu o Goethe-Institut, integrando-o na vida cultural portuguesa, procurando que ele fosse verdadeiramente cosmopolita e virado para a cultura da cidade e do país. Em suma: um lugar acolhedor, capaz de promover encontros, trocas e cruzamentos culturais, linguísticos e artísticos.

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Joachim Bernauer que está de partida para Munique Miguel Manso

Na festa de despedida, no início de Dezembro, o director do Goethe-Institut em Portugal (cargo que desempenhou desde Setembro de 2008 até ao último dia deste ano), Joachim Bernauer deu um pequeno show no auditório da sede do instituto, em Lisboa, no Campo dos Mártires da Pátria. Não cantou, apesar do canto ser, a par da Filosofia, Literatura e História da Arte, um dos seus domínios de formação académica, mas representou no palco, com a ajuda de uma produção multimédia cheia de humor, o papel de um director feliz pelo trabalho realizado e por tudo aquilo que viveu em Portugal.

Teve, a felicitá-lo e a aplaudir os seus dotes de actor, um público constituído, na sua grande maioria, por portugueses: frequentadores do Goethe-Institut, professores universitários, gente das artes e das letras. Este predomínio de portugueses de todos os quadrantes culturais mostra claramente que Joachim Bernauer estava bem enraizado na vida cultural de Lisboa e teve o reconhecimento dos seus representantes, que sempre lhe elogiaram a abertura, a ausência de formalidades e preconceitos, a visão cosmopolita, o conhecimento do que se passava nos vários domínios da cultura portuguesa.

Neste aspecto, o director (que vai para a sede do Goethe, em Munique), substituído desde ontem por Claudia Hahn-Raabe, vinda de Istambul, cumpriu na perfeição os desígnios da política cultural da instituição para a qual trabalha. Na verdade, o Goethe-Institut, em todos os países onde tem representação, procura sempre integrar-se na vida cultural autóctone, trabalhando em função da lógica local e servindo-a, das mais variadas maneiras. Não renuncia, evidentemente, à sua missão de difundir a cultura e a língua alemãs, mas tenta fazê-lo trazendo para o seu interior a vida cultural dos sítios onde está instalado. Orienta-se por um projecto cosmopolita, que põe à distância as marcas – fortes, pesadas, com uma tradição cheia de sombras – de uma Kultur alemã.

Neste aspecto, o Goethe de Lisboa tem uma história exemplar. Entre 1969 e 1976 foi dirigido por Curt Meyer-Clason (falecido em Janeiro de 2012, com 101 anos), que fez do Instituto uma “ilha de liberdade”. Intelectuais, artistas e escritores que se opunham ao regime, independentemente de terem qualquer afinidade com a língua ou a cultura alemãs, encontraram aí um lugar de encontro, discussão, refúgio e conhecimento do que se passava “lá fora”.

Curt Meyer-Clason permanece ainda hoje, de certa maneira, como o genius loci dessa casa que ele inaugurou no Campo dos Mártires da Pátria (quando chegou a Portugal, ela situava-se num prédio da Avenida da Liberdade) e a sua herança indeclinável foi assumida – num contexto completamente diferente, como é óbvio – por Joachim Bernauer, que ainda teve oportunidade de trabalhar com o antigo director (reconhecido tradutor, em língua alemã, de autores portugueses e brasileiros) numa antologia de poesia portuguesa do século XX, apresentada em Frankfurt, em 1997, no ano em que Portugal foi o “país-tema” da Feira do Livro. Nessa altura, estava longe de saber que viria a ser director do Goethe em Portugal, mas tinha-o integrado em 1993 e, de 1994 a 1998, nele permaneceu com um contrato local. Durante esse tempo, nasceu em Lisboa a sua segunda filha.

O seu primeiro contacto com Portugal tinha acontecido em 1982, e a razão não era de ordem cultural: veio visitar a namorada portuguesa que é, desde há 30 anos, a sua mulher. A ele se deve uma homenagem pública a Curt Meyer-Clason, como aquela que aconteceu em Abril de 2013, quando foi apresentada, no Teatro Nacional D. Maria II, a tradução dos Diários Portugueses do antigo director (editado pela Documenta, com o apoio do Goethe-Institut Portugal, tradução e posfácio de João Barrento). Presentes, para recordar e homenagear “o nosso melhor alemão”, como lhe chamou, no discurso de apresentação do livro, Rui Vieira Nery, estiveram escritores, intelectuais e gente do teatro que o conheceram bem.

Em 1998, Joachim Bernauer foi dirigir, em Los Angeles, uma residência para artistas (Villa Aurora). E quatro anos depois foi colocado em São Paulo, onde ficou durante seis anos como director da Cultura para o Goethe-Institut na América do Sul. Foi depois dessa longa experiência brasileira que veio para Lisboa, em 2008. "O Brasil mudou a minha perspectiva sobre a Europa e o mundo. No Brasil, percebi que nasci brasileiro, mas deslocado em terras teutónicas, e é por isso que me dei tão bem em Portugal, que, pela sua característica sociopsicológica, é algo como um Brasil alemão, ou uma Alemanha brasileira (não falo do seu potencial económica). Durante esses anos em que lá estive, Lisboa continuava de ser a cidade onde queria viver e trabalhar. E consegui voltar”, afirma.

A questão pós-colonial, o cosmopolitismo, as trocas culturais entre a Europa, a África e a América entraram na sua agenda e determinaram alguns dos seus projectos de maior fôlego. Um deles foi um programa que consistiu num diálogo-plataforma para a arte contemporânea na África e na Europa, em três etapas: a primeira foi em Lisboa, a segunda em Dacar e a terceira foi em Fevereiro do ano passado, em Berlim, com um simpósio internacional intitulado Rethinking Cosmopolitanism, na Akademie der Künste (Academia das Artes), associado a uma grande exposição de arte contemporânea comissariada por Hans Belting.

O seu olhar cosmopolita e atento à miscigenação e às culturas das diásporas teve influência nalguns dos programas realizados ou apoiados pelo Goethe-Institut, de tal modo que por várias vezes, sob a sua égide, o instituto como que lançou o desafio para que Portugal olhasse com mais atenção e sem complexos neocoloniais a cultura dos países africanos de língua portuguesa, assim como as manifestações culturais e artísticas dessa “África” que se situa no centro e nas periferias de Lisboa. A “escola intercultural” foi um dos projectos que acolheu, por acreditar que reside aí, na capacidade de integração de jovens que muitas vezes são considerados cidadãos de segunda, “um potencial enorme para Portugal e a Europa revitalizarem a sociedade”.

De Portugal, diz que “a cena cultural é viva e muito diversificada”. Mesmo em tempos de grandes cortes orçamentais, “a programação cultural continua a ter uma pujança e uma diversidade muito impressionantes”. Não é que não ache escandaloso o orçamento exíguo que o Governo apresenta para a cultura. E acrescenta: para atingir níveis decentes, deveria ser três vezes superior, já que Portugal, diz ele, é um dos países da União Europeia que menos investem na cultura. Mas, fora isso, realça o gosto que sempre sentiu em trabalhar tanto com as grandes instituições, como a Gulbenkian, como com pequenas entidades ou grupos, como o Teatro Praga (a quem o Goethe-Institut encomendou todo o programa da comemoração dos 50 anos, o Marco Alemão, em Setembro do ano passado), o Grupo do Teatro do Oprimido (GTO), ou a organização do Festival Materiais Diversos, de artes performativas.

Na base deste enorme leque de parcerias e colaborações que Joachim Bernauer promoveu, está o gosto pela diversidade cultural, o que explica o rasto que deixa em Lisboa, da universidade a grupos e projectos culturais alternativos, do Remote X (produzido conjuntamente com o Teatro Maria Matos, que tem a dirigi-lo um outro cosmopolita, Mark Deputter, que também se tem aplicado a ultrapassar fronteiras disciplinares e artísticas), ao Kino, uma mostra de cinema de expressão alemã, no São Jorge, passando pela colaboração com os Maumaus (escola de artes visuais, vizinha do Goethe-Institut) ou o Carpe Diem (centro de arte e pesquisa, na Rua do Século). Estes são apenas alguns exemplos.

Na hora de se ir embora, destaca o “trabalho heróico” de gente que, sem grandes meios nem apoios, consegue fazer com que, no plano cultural e artístico, muita coisa interessante aconteça. E do seu contacto e trabalho com artistas, escritores e intelectuais ficou com uma ideia muito mais positiva do que qualquer português seria levado a pensar: “Em geral, são competentes, cultos e cosmopolitas. E muito mais europeus do que eram dantes. Noto que, ao longo destes 30 anos em que fui conhecendo Portugal, houve uma agradável desburocratização e eliminação das hierarquias. Sobrevivem algumas formas barrocas de excessos burocráticos e de estruturas hierárquicas. E a Europa, com as suas burocracias, não ajuda neste aspecto”.

Mas há características negativas que, mesmo na sua visão indulgente e contaminada pela atracção que as doçuras do clima exercem (muito conforme às célebres “viagens” que muitos alemães do século XIX fizeram aos países do Sul: a Italienische Reise, de Goethe, é o modelo inultrapassável), lhe parecem indesculpáveis.

Ele não percebe por que é que pessoas como José Saramago e Maria João Pires – “Tive o privilégio de trabalhar com ambos” – foram tantas vezes criticados publicamente por exigências de uma political correctness intolerante. Na verdade, um alemão cosmopolita, vindo do país dos “freaks”, terá sempre muita dificuldade em perceber a tendência para a normalização que se verifica em todos os planos da sociedade portuguesa.

Diz ele, em jeito de augúrio, e com conhecimento de factos passados: “Sonho com um Portugal que consiga gerir uma instituição artística e pedagógica que acolha de forma exemplar uma Maria João Pires e o seu inigualável talento”. Dos encontros, no Goethe-Institut, onde esteve em discussão e confronto a cultura portuguesa e a cultura alemã, diz que foram sempre empolgantes: “Não me lembro de nenhum que tenha sido chato”. E esclarece: “Nos ambientes culturais da Alemanha há uma opinião muito positiva de Portugal e dos portugueses. Ainda que, por causa da crise económica, haja também alguns preconceitos, em certos meios, a imagem de Portugal é em geral muito boa”.

Em relação à pequena Alemanha que se situa no Campo dos Mártires da Pátria (em tempos rebaptizado como Campo dos Mártires da Gramática, em homenagem aos estudantes dos cursos de Língua Alemã, no Goethe-Institut), Joachim Bernauer foi uma garantia de reciprocidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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