Histórias de jazz iluminadas por Mário Laginha

Em duas noites no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, viajou-se pela obra do pianista e compositor, que foi o primeiro convidado da iniciativa comissariada por António Curvelo e Manuel Jorge Veloso. Foi a noite de todos os elogios, mas também o início de uma longa viagem que se propõe fazer o levantamento da cena jazzística nacional.

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Bárbara Raquel Moreira
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Não foi ao acaso que os críticos António Curvelo e Manuel Jorge Veloso (também músico) escolheram Mário Laginha para abrir o leque de convidados e homenageados na iniciativa que ambos inventaram. “É claro que Mário Laginha, que é um dos mais talentosos e estimulantes músicos de jazz em Portugal, e é muito conhecido, provavelmente arrastou mais gente”, admitia ao PÚBLICO Veloso, na quarta-feira à noite, no final da bem-sucedida sessão inaugural do ciclo, que tinha praticamente lotado o café-concerto do Centro Cultural Vila Flor (CCVF).

O primeiro serão do ciclo tinha, de facto, superado as expectativas mais optimistas dos organizadores. “Apesar de se tratar de uma noite de semana, foi uma surpresa agradável ver a sala cheia”, notava Curvelo. Mas o mais importante tinha sido – acrescentou – terem conseguido “pôr a malta nova a falar e a conviver com os músicos consagrados”.

E se o sorriso franco e luminoso de Mário Laginha irradiava “uma sensação de realização”, como próprio confidenciaria ao PÚBLICO depois de ter ouvido obras suas interpretadas por um combo da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE), do Porto, a verdade é que os cinco jovens músicos que puderam mostrar as suas capacidades perante o compositor não estavam menos felizes.

“Tocar Mário Laginha é incrível. A música dele não é fácil de definir; é sempre boa música, que está ali a meio caminho entre o erudito e o jazz. É Mário Laginha e ponto final!”, dizia Eduardo Cardinho. Este vibrafonista, nascido em Leiria há 20 anos, é o líder do quinteto – que, de resto, tem o seu nome – que foi desafiado a abrir o alinhamento das onze escolas de músicas do país convidadas a participar neste programa de encontros mensais, até Maio de 2015.

Homenagem a Sassetti
No momento de abrir a sessão, Curvelo e Veloso prestaram uma discreta mas tocante homenagem a Bernardo Sassetti pondo no ar uma gravação do tema As coisas mudam. O pianista e compositor precocemente desaparecido em 2012 esteve, de resto, na origem da decisão de ambos de avançarem para a realização de Histórias de Jazz em Portugal. “Pensámos que é melhor falar das pessoas enquanto elas estão vivas e não depois de terem desaparecido. E, principalmente, no jazz, isso não costuma ser feito entre nós”, justificou Veloso.

Mas – disse Curvelo ao abrir a sessão no CCVF – o objecto principal deste ciclo, que apresenta um formato inédito, é permitir “uma reflexão sobre a situação actual do jazz português, que vive um momento único”. E, sublinhando não estar na mente dos organizadores nem fazer “uma história do jazz em Portugal, nem apresentar o elenco dos melhores músicos portugueses”, o ex-crítico de jazz do PÚBLICO falou do “paradoxo” de uma situação em que temos “um número crescente de músicos portadores de uma elevada qualidade artística”, muito fruto da multiplicação de escolas profissionais por todo o país, e simultaneamente o jazz vive “numa semi-clandestinidade”, ostensivamente calado nos meios de comunicação social (principalmente na televisão), e com muito poucos palcos onde se mostrar com regularidade, além dos festivais.

É o mapeamento deste quadro que Histórias de Jazz em Portugal se propõe fazer durante mais de um ano e 16 sessões: todos os meses, em duas noites sucessivas, alternadamente no CCVF e no Hot Club de Portugal (Lisboa), uma figura consagrada do jazz Portugal é convidada a “despir-se” perante o público – como, a certa altura, admitiu Mário Laginha –, revelando a sua história, os seus mestres, a sua forma de trabalhar. Simultaneamente, vê como a sua criação influenciou/influencia quem agora está a começar a sua carreira, através de pequenos concertos de combo de escolas de música – foi o programa da primeira noite.

No serão seguinte, três outros músicos, que não tenham relação musical directa com o homenageado, são convidados a falar de si e daquele. A noite encerra com um concerto “carta-branca” do homenageado, que pode escolher livremente com quem, e o que quer tocar.

Todas as sessões estão a ser gravadas pela Antena 2, para memória e difusão futuras, facto que Veloso considera da máxima importância: “Vamos ficar com um arquivo histórico do ciclo, o que corresponde a satisfazer um desejo nosso e de todos os músicos com quem falámos”.

Na contracapa do programa geral da iniciativa, estão inscritos os 64 nomes dos músicos que estarão presentes no ciclo, mas que, afinal, e por via dos instrumentistas que integram as onze escolas convidadas, irão facilmente ultrapassar a centena. “Vai ser uma mostra bem representativa da cena jazzística nacional”, acredita Curvelo, mesmo se a lista deixa de fora “vários nomes que podiam cá estar”. E ambos os organizadores destacam a preocupação que tiveram de “contactar, pessoalmente”, todos os músicos envolvidos.

Fascínio por Keith Jarrett
Na noite de quarta-feira, Mário Laginha “despiu-se” perante as mais de meia centena de pessoas que afluíram ao café-concerto do CCVF. Contou a “história vulgar” de um miúdo que aos cinco anos descobre que tem grande facilidade para tocar piano, mas que se cansa do instrumento pela repetição das solicitações familiares para que mostrasse as suas habilidades a quem quer que visitasse a casa. Vira-se então para a guitarra, mas a sua “verdadeira paixão da adolescência foi a ginástica desportiva”.

Seria, depois, num velho piano vertical no ginásio do Algés e Dafundo e , principalmente, no contacto, através da televisão, com a música de Keith Jarrett (do disco Facing You, de 1972), que Laginha redescobriu a paixão pelo seu primeiro instrumento. “Foi uma espécie de epifania: fiquei doente com aquilo e regressei ao piano furiosamente”, confessou o pianista, ao mesmo tempo que saltava entre a mesa e o palco do café-concerto para explicar, com alguns acordes no piano, por que é que Jarrett é “um génio, um músico à parte, que até irrita porque não lhe encontramos nenhuma debilidade”.

Pudemos, então, ouvir a primeira de três gravações de temas de Jarrett, com Laginha, a pé no palco, a “dançá-los” com as mãos e o corpo, rendido à “inspiração descomunal” do pianista americano.

Depois ouvimos Lennie Tristano e Bud Powell, outras referências afectivas do pianista, às quais Manuel Jorge Veloso acrescentou uma Fantasia cromática e fuga de Bach tocada por Claudio Arrau, para mostrar como Laginha – que teve como primeiro (e único) disco até agora gravado a solo precisamente Canções e Fugas (2006) – é também herdeiro da música dos grandes compositores clássicos.

“O jazz é a minha casa, o grande alicerce de tudo o que faço, mas eu sinto atracções diferentes, gosto de muita coisa e não tenho tendência para a hierarquizar”, confirmou Laginha, que terminou a primeira noite a “ouvir-se” interpretado pelo combo da ESMAE.

Carlos Azevedo, pianista, compositor e professor nesta escola – que, no ano 2000, foi pioneira na criação de um curso de jazz no ensino superior em Portugal –, foi o responsável pela participação da instituição no ciclo. Explicou ao PÚBLICO que a sua preocupação fora reunir uma formação – o Quinteto de Eduardo Cardinho, segundo classificado na última edição do Prémio Jovens Músicos – que não incluísse piano. “Seria ingrato colocar um pianista a tentar colar-se a Mário Laginha”.

E este combo da ESMAE, que entrou no palco do café-concerto apoiado por uma pequena claque na sala, deu bem conta do recado de tocar frente ao compositor. “Uma das coisas que nos realizam é vermos que alguém toca aquilo que criamos. Chegar aqui e ver estes jovens estudantes tocar a minha música, e tão bem, é uma sensação extraordinária”, confessou Mário Laginha, no final.
 
Nova “injecção de ego”
Na quinta-feira, o pianista recebeu segunda dose de “injecção de ego”, ao ouvir mais três outros músicos, de diferentes gerações e proveniências geográficas, comentar a sua obra.

Os convidados foram o saxofonista José Nogueira – “um veterano, o que quer dizer que é mais novo do que nós”, gracejou Curvelo, na apresentação –, o pianista Luís Figueiredo, um músico de formação clássica cuja aproximação ao jazz se fez num percurso idêntico ao de Laginha; e o trombonista Luís Cunha, que actualmente dirige a big band do Hot Club de Portugal.

Foi a (segunda) noite de todos os elogios à música, e à figura, do homenageado. José Nogueira, que – lembrou Manuel Jorge Veloso –, ao lado de António Pinho Vargas, foi responsável pela criação de uma sonoridade própria para “um jazz português”, destacou igualmente a “síntese” que a música de Laginha faz com a herança erudita, a música popular com o jazz. Luís Figueiredo realçou ainda “a generosidade desmedida” do homem, para além do “génio criativo” do músico. Luís Cunha enfatizou o trabalho do compositor para formações orquestrais, com a preocupação em “espalhar a melodia pelos instrumentos todos”. Cada um deles escolheu um tema de Laginha para “provar” as suas alegações.

Mário Laginha agradeceu, já no palco do pequeno auditório do CCVF – bem preenchido com uma centena de pessoas –, com um concerto acompanhado com músicos com que trabalha habitualmente: Alexandre Frazão, na bateria, Bernardo Moreira, no contrabaixo, André Fernandes, na guitarra.

“Foi mágico! Obrigado”, despediu-se, emocionado, no final.

A próxima sessão (dupla) de Histórias de Jazz em Portugal acontecerá a 4 e 5 de Fevereiro no Hot Club de Portugal, com o contrabaixista Zé Eduardo como convidado.

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