Crítica: Dança de uma mulher e de um homem sós

Os solos de Paulo Ribeiro e de Leonor Keil são balanços autobiográficos a reflectir o momento actual dos seus percursos como coreógrafo e intérprete.

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"Sem um tu não pode haver um eu" (2013), de e com Paulo Ribeiro José Alfredo
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"Bits & Pieces", de Olga Roriz para Leonor Keil"Como é que eu vou fazer isto?", de Tânia Carvalho para Leonor Keill Susana Paiva
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"Como é que eu vou fazer isto?", de Tânia Carvalho para Leonor Keill José Alfredo

Solos, Companhia Paulo Ribeiro, Pequeno Auditório, Centro Cultural de Belém: Sem um tu não pode haver um eu (2013), de e com Paulo Ribeiro, 28 de Março (quatro estrelas); Como é que eu vou fazer isto? (2013), de Tânia Carvalho para Leonor Keil, 29 de Março (três estrelas e meia); Bits & Pieces, de Olga Roriz para Leonor Keil, 29 de Março, estreia absoluta (três estrelas). Salas cheias

 “É possível dançar Ingmar Bergman?” A questão, lançada no texto em off dito por Paulo Ribeiro no prólogo da peça, é respondida com um solo onde, mais do que apropriar-se da filmografia do mítico cineasta sueco, o coreógrafo (n.1959) envereda por uma versão sensorial das atmosferas contemplativas do realizador, repletas de presságios e de emoções densas e contidas. Tal como Bergman (1918 – 2007) fez do livro Lanterna Mágica (1987) uma adenda autobiográfica à sua obra esta é, sem dúvida, a mais confessional e trágica das peças de Ribeiro.

Não reinventa aquele jeito espasmódico, convulsivo, de sabor tragicómico a que, desde os alvores da Nova Dança Portuguesa nos anos 80, nos habituou a sua dança. Mas expõe-se com desarmante candura à vulnerabilidade e ao risco, apoiando-se apenas num trunfo: o seu admirável amadurecimento como intérprete, apuradíssimo na relação orgânica entre o movimento e as musicalidades, de Bach, da bossa-nova jazz, ou do texto em off de Bergman. Sóbrios cicloramas escuros e eficazes transições de luz (Nuno Meira) vão transfigurando o palco; entrevemos, por fracções de segundo, um cisne exangue a retorcer-se no solo ou, na suspensão periclitante do corpo sobre uma perna, a transitoriedade de todo o estado físico, mental ou existencial. Quando, ao som intemporal do tema Insensatez (belíssima versão Robert Wyatt) em médio volume, se abraça s si próprio, de costas para nós, as mãos a percorrer o tronco num auto-aconchego, ou numa dança com um par ausente ou imaginário, é como se um fade-in cinematográfico incidisse na cena; o mesmo tema encerra a peça, e o fade-out da câmara invisível deixa a figura solitária entregue à sua própria história. Sem um tu…é um aceno cúmplice do coreógrafo para o realizador adoçando-lhe, porém, as arestas, a contenção nórdica e a incomplacência para com as personagens - que o tornavam, paradoxalmente, tão próximo e humano.

No serão seguinte, foi a vez de Tânia Carvalho (n.1976) e Olga Roriz (n.1955) assinarem solos para Leonor Keil (n.1973), uma das mais carismáticas bailarinas portuguesas. O repto suscitava expectativas: como se articularia a vincada personalidade artística de Keil ao universo das coreógrafas? Com Carvalho, Keil constrói um alter-ego, em trânsito entre as luzes fátuas da ribalta e o recolhimento dos bastidores: uma bailarina-fantoche, reminiscências chaplinianas e alusões subtis aos bonecos mecânicos de Coppélia ou Petrushka, convocam com nostalgia crítica a história da dança ou o showbizz. Se a insistência inicial nesta estratégia roça a redundância, a peça acaba por descolar, apoiada, sobretudo, no versátil magnetismo da intérprete. E culmina numa soberba imagem de libertação: um salto lança-a fora do cilindro de luz e o corpo desaparece na escuridão da cena, como que projectado no espaço sideral.

Da aproximação entre Roriz e Keil é menos perceptível o surgimento de um terceiro corpo: o temário da coreógrafa (a dramaticidade das personagens, o feminino) prevalece e aparenta circunscrever a stamina da intérprete.

Estes três solos mostram o quanto, sob as diferentes circunstâncias, pode a nossa energia criativa procurar direcções mais concêntricas ou mais expansivas. Razões práticas e restrições económicas não justificam a tendência crescente de muitos criadores-intérpretes para o trabalho a solo, cada vez mais o género privilegiado para convocar, sem intermediações, balanços pessoais e relação com o mundo.

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