Crítica de música: paisagens e viagens no Festival Música Viva

O Coro Juvenil da Universidade de Lisboa, com direcção de Erica Mandillo e João Lima ao piano, surpreendeu pela qualidade técnica e artística.

Orquestra de Altifalantes: Obras de Diogo Alvim, Ka’mi e Pedro Rebelo. Lisboa, Teatro São Luiz (Jardim de Inverno),13 de Dezembro, às 19h. Sala cheia. 3 estrelas

Coro Juvenil da Universidade de Lisboa: Erica Mandillo (direcção), João Lima (piano), Música portuguesa e finlandesa dos séculos XX e XXI, Lisboa, Teatro São Luiz (Jardim de Inverno), 13 de Dezembro, às 20h. Sala cheia. 4 estrelas

A edição de 2013 do Festival Música Viva, organizado pela Associação Miso Music, percorre várias cidades (Guimarães, Lisboa, Cascais e Évora) e contempla como é habitual várias actividades: concertos, cursos, sessões pedagógicas, instalações sonoras e multimédia, bem como o concurso de Composição Electroacústica, que este ano teve como vencedores o alemão Ludwig Berger e o português António Ferreira. No seu todo, o programa constitui um mosaico bastante díspar de estéticas, sendo assumido pelos mentores do festival (Paula e Miguel Azguime) como forma de dar voz sem imposições de gosto a um grande número de criações contemporâneas que correriam o risco de ficar na gaveta nestes tempos de crise.

Sob a designação “Estéticas em Diálogo”, os dois concertos da passada sexta-feira colocaram-nos perante dois mundos habitualmente distantes: a música electroacústica e o repertório para coro juvenil. No primeiro, a Orquestra de Altifalantes serviu de suporte à estreia de três peças de compositores da geração de 1970: Diogo Alvim, Ka’mi e Pedro Rebelo. Todas partem de material pré-existente, apresentando-se no caso de Travelogue #1, de Alvim, e de Culinary Belfast: Soundscaping Food, de Rebelo, como paisagens sonoras com apreciável poder sugestivo reconstruídas a partir de recolhas de gravações.

Em Travelogue #1 o registo sonoro de lugares, situações e ambientes do sul de França e da Suíça transmite de forma nítida a ideia da viagem, enquanto Culinary Belfast segue uma proposta mais inusitada ao propor traduzir em termos auditivos a cultura alimentar da cidade irlandesa através da integração de material que incluiu, por exemplo, articulações verbais de cozinheiros e vendedores e que explora sonoridades ligadas a processos como cortar, ferver ou fritar.

Mais ambiciosa e elaborada do ponto de vista composicional e da arquitectura sonora, a peça Xenakis’sche Grauwacke, de Ka’mi, presta homenagem ao compositor grego, que usou processos análogos de “auto-empréstimo” de material musical. Partindo da ideia de “grauvaque” (rocha de origem sedimentar constituída por fragmentos de outras rochas) combina sons “sintéticos” e sons “concretos” extraídos na sua maioria de outras peças do próprio Ka’mi e submete-os a uma grande variedade de processos e efeitos.

No segundo concerto, o Coro Juvenil da Universidade de Lisboa, com direcção de Erica Mandillo e João Lima ao piano, surpreendeu pela qualidade técnica e artística, pela facilidade com que aborda estilos diversos e subtilezas interpretativas e por uma concepção do concerto como espectáculo que implica um encadeamento fluente das peças, o movimento e a expressão corporal e a memorização integral do repertório.

O programa fez alternar música dos séculos XX e XXI de compositores finlandeses e portugueses, incluindo encomendas da Miso Music a Eurico Carrapatoso e Daniel Schvetz e a estreia de Naturezas da Menina Gotinha de Água, de Miguel Azguime, peça que deriva da ópera infantil homónima e que se distingue pelas suas texturas transparentes, pelo detalhado trabalho rítmico e pela exploração do potencial musical da dimensão fonética do texto.

A vertente portuguesa do programa contemplou ainda as notáveis harmonizações de melodias rústicas de Lopes-Graça (Agora baixou o Sol e Acordai Pastorinhas), os instantes sonoros quase fotográficos dos 5 Haikus de Schvetz e algumas páginas de Carrapatoso. A sua belíssima versão da canção José Embala o Menino (1997) e as duas peças de Chiaroscuro, melódica e harmonicamente muito atraentes, mas despretensiosas na linguagem musical.

No que diz respeito à rica tradição coral finlandesa, a vitalidade rítmica e o colorido peculiar de Pakkanen, de Soila Sarilola, e de The Joiku, de Jukka Linkola, contrastou com a profundidade e intensidade expressiva de Malagueña (da Suite de Lorca), de Rautavaara.
 
 
 

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