Borrou a pintura

Se não fosse uma ofensa ao Miró, era caso para dizer que foi surrealista toda esta trapalhada. Aquilo que começou por ser um problema financeiro passou rapidamente a ser uma questão cultural e descambou para a arena da luta política. E ninguém sai bem na fotografia.

A questão de fundo e que provocou um extremar de posições é aparentemente simples: saber se a colecção Miró deveria ficar em Portugal como património cultural e ser rentabilizada, ou, ao invés, ser vendida e usar o dinheiro para tapar parte do buraco do BPN.

Se perguntam se prefiro ter em Portugal a poesia, os sonhos, as estrelas, as mulheres e os pássaros de Miró, ou, pelo contrário, ver o banco tóxico do BPN receber um cheque de 36 milhões da Christie's para pagar o que deve à CGD, o primeiro impulso seria dizer: “Deixem cá estar sossegadas as pinturas e as colagens do Miró.” Mas para tal teria de ter argumentos.

E os argumentos dos socialistas e da DGPC, bem como a ausência de argumentos do lado do Governo não convencem. Dizer, como disse Pedro Lapa, que as obras deveriam ficar em Portugal porque “a colecção tem um valor inestimável” é não dizer nada. Por mais que gostemos de Miró, a colecção tem um valor estimável: são 36 milhões de euros. Mais coisa menos coisa, consoante a procura e a oferta. É preciso ver que o Estado, ao não alienar as obras, abdica de receber 36 milhões. E deixar de receber dinheiro é exactamente a mesma coisa que gastar dinheiro. O escândalo que não seria agora se o Estado, nestes tempos de austeridade, agarrasse no dinheiro dos contribuintes e fosse comprar uns Picasso ou uns Dalí. Alguém tem de tapar o buraco do BPN: ou tapa-se com Miró, ou vai-se ao bolso dos contribuintes.

Do outro lado da barricada argumenta-se, e bem, que a forma como o Governo e o secretário de Estado da Cultura geriram esta venda foi desastrosa. Não só foi desastrosa, como pelos vistos até ilegal. É um tribunal que diz que o despacho de Barreto Xavier que viabiliza a exportação das obras é ilegal. E o secretário de Estado, com alguma candura à mistura, argumenta: "Acha normal que por causa de uma questão deste género eu pondere a demissão?" Tendo feito uma coisa ilegal, é caso para Barreto Xavier ponderar.

E o estranho no meio disto tudo é a decisão do próprio tribunal, que, mesmo reconhecendo que as obras saíram de Portugal feridas de legalidade, não travou a venda. Escudou-se numa questão técnica para viabilizar o leilão: a decisão de alienação não foi do Governo, mas sim da Parvalorem, cujo único accionista é o Estado. E em jeito de recado, de quem viabilizou o leilão a contragosto, o tribunal diz: "Não pode este tribunal emitir qualquer ordem dirigida a qualquer membro do Governo, relativa à forma de exercício dos seus poderes da sua função accionista." Então o tribunal, ao reconhecer que o Governo tem poder para condicionar a Parvalorem, não está também a reconhecer que a decisão da alienação também deveria ser imputada à tutela?

No fim disto tudo, teve bom senso a Christie's, que cancelou a venda para não prejudicar o valor do encaixe. E no meio disto tudo não houve ninguém que se lembrasse de pedir um estudo aprofundado para perceber a rentabilidade de ter obras de Miró em Portugal. Quando é que o Estado poderia (ou não) recuperar o investimento, se optasse por manter as obras? Quais seriam as estimativas de visitantes? Qual seria o custo unitário da entrada? Quais seriam as externalidades positivas? No princípio disto tudo concordava que os Miró deveriam ficar em Portugal. Mas no fim disto tudo continuo sem argumentos para defender uma coisa, ou o seu contrário.
 
 
 
 
 

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