Teologia débil

“Sou um poeta profano. Pode parecer paradoxal, mas essa é também a minha forma de testemunhar o religioso”, elucidava José Tolentino Mendonça numa entrevista datada de 2009. Onde se lê profano não se deve ler mundano, mas sim a realização quotidiana de um sagrado religado ao corpo social e individual, reconduzido à temporalidade. O exemplo a seguir é o do Deus da kenosis, rebaixado à condição humana: “também te busquei pelas ruas de cidades/ amortecido no solo como planta tenra” (Imitação de Cristo, p. 50). Um “te” grafado em minúsculas. Eis a via precária e audaciosa de um sujeito poético que “para chegar tão perto quanto possível/ para tocar a fronteira e a fenda” (p. 26), acatou o conselho de T.S. Eliot e tomou “o caminho onde não há êxtase”. Percorrer esse caminho implica abdicar do discurso místico enquanto discurso de desmesura e de alteridade que desentranha o homem do próprio corpo. Implica procurar o “lodo” em vez da “pintura” (p. 26), implica que o poema se torne próximo, que seja troca, “conversa humana” (Do poema como contrato social, p. 46).

Na sua leitura da ontologia de Heidegger, Gianni Vatimo propôs um “pensamento débil” para dar conta do ocaso da metafísica na modernidade tardia: um pensamento consciente de que não é possível estruturar a realidade num todo objectivo e mensurável sem desumanizá-la, sem violentá-la. Essa realidade ordenada não corresponde a uma essência, ao verdadeiro, mas é uma interpretação da realidade validada pela ciência, que não traduz adequadamente a experiência empírica (a física e a astrofísica descrevem o indescritível). Na verdade, a realidade empiricamente acessível apresenta-se vaporizada, múltipla, débil: apresenta-se irrealizada. Tolentino infunde nos seus poemas uma correlativa “teologia débil”, não porque insegura ou superficial, mas antes porque, mais consciente dos seus limites, reconhece a debilidade da fé no império do secular, e fragiliza-se para ir ao encontro da fragilidade do mundo, nisso residindo não a sua fraqueza, mas a sua força. Tal teologia débil não é compatível com um Deus imóvel e fora do tempo, antes carece de um Deus “com a brandura de um cordeiro doente” (p. 51), que “sendo casto” se deixe “consumir/ com a paixão insultuosa/ dos devassos” (p. 25). Em suma, um Deus cristão em vez do Deus metafísico que tende a fundar uma narrativa de violência e dominação, pois só um Deus humanizado - um Deus com corpo - pode “abraçar a imundície de todos os seus filhos” (p. 25). Pela primeira vez na obra poética de Tolentino, Deus é profusamente nomeado.

No Retrato de Pasolini em Nova Iorque, o poeta e cineasta que anda pelas “estradas escusas do Harlem, de Greenwich Village ou de Brooklyn/ em bares onde nem a polícia entra”, expondo o corpo à fúria voraz do mundo, ciente da “blasfémia/ que a santidade também tem de ser” (p. 20), não é Dante (embora desça aos infernos), mas Boccaccio. É aquele que invade e documenta a vida vivida, regressando da noite de “corpo derrubado pela surpresa de estar vivo” (p. 20), uma ferida aberta, um poveri cristi. Afinal, “salvam-se apenas os que recusam tudo/ até mesmo a salvação” (p. 34).

A “teologia débil” completa-se com o louvor do humano - feito de contradições vivas, feito de mudança -, com o louvor do “vulnerável” e do “inacabado”, com o louvor dos “Justos”, conseguido sem estremeções retóricos, muito por via do diálogo com a cultura cristã e com a cultura secular contemporânea - as Escrituras, o gospel, o cinema, a pintura, a música popular urbana. Louvor que não despista a tonalidade crepuscular: o elogio torna-se elegia, porque do mundo nem sempre se conhece a delicadeza, tem “cidades costeiras” onde “o coro trágico da posteridade aspira o ar” (p. 32).

Disponível para os pequenos e para os humildes, a poesia de Estação Central é regida por uma ética exigente (antítese da ética indigente da nossa época): a de Lévinas, essa que é “responsabilidade por outrem”, que nasce da súbita e extrema exposição ao outro (ao seu rosto), ao outro que se impõe à nossa guarda, como esses amigos que nos “ocupam com a sua feroz solidão” (p. 48). Uma ética que assiste o outro na queda, que é, mais do que fraternidade, amor; e que não é separável do corpo, pois tal como este o amor “nasce do erro”, da constante aprendizagem da queda e da finitude: “não aprendo com o corpo a levantar-me/ aprendo a cair e a perguntar” (p. 10). E o endereço do amor é a noite: a aurora, os automatismos do dia funcionário, apagam-lhe os vestígios, desinfectam-na (Patti Smith explica o Cântico dos Cânticos).

Mas Estação Central desfia outro novelo: o de uma peregrinação por aquela América do Norte, mítica sem dúvida, que supre a escassez de tempo - de História - com a generosa narrativa dos espaços: em extensão (o coast-to-coast) e em altura (o arranha-céus, sucedâneo possível do promontório romântico, com valores simbólicos evidentes de proximidade da abóbada celestial e de torre de Babel periclitante). Peregrinação com valor de rito de passagem, de que a Estação Central - a Grand Central Station - é alegoria perfeita, por abrir caminhos virtualmente infindáveis na intersecção de outras estações (e de outras vidas). Estação central da vida, da meia-idade. It''s time to be clear é afinal o título do poema inaugural.

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