Actriz em estado de graça dá porrada à concorrência
Há uma actriz em estado de graça que dá mesmo porrada à concorrência, mas isso não chega para salvar Atomic Blonde, mais interessado em parecer do que em ser.
Estamos todos de acordo — e se não estamos devíamos estar — que Charlize Theron é melhor heroína de acção do que praticamente toda a concorrência masculina contemporânea. Estamos também todos de acordo que vê-la a dar cabo de meia dúzia de latagões soviéticos é uma vitória para o sexo feminino, para a igualdade de género e para a correcção política.
Em Atomic Blonde, a actriz sul-africana é uma agente secreta inglesa atirada de cabeça para o ninho de vespas que é Berlim nos últimos dias do Muro em 1989 — e como se costuma dizer que nunca se deve mandar um amador fazer um trabalho de professional, a capacidade letal desta espia é tal que nunca se devia mandar um homem fazer um trabalho de mulher. O que já não tem tanta graça é ver a Theron a entregar-se de corpo e alma a esta agente glacial e implacável (com um visual que remete para ícones do último meio século como Julie Christie, Nico, Debbie Harry ou a Monica Vitti dos tempos Antonioni) num filme que não lhe faz favores nenhuns.
Atomic Blonde perde-se no meio de uma salganhada de tons que nunca consegue equilibrar a contento: ora quer ser um filme de espionagem a sério, em modo pós-John Le Carré; ora quer ser uma versão pop e descartável dessas histórias à James Bond dos anos Roger Moore; ora quer ser um arraial de pancada eighties, só que com a Theron, em vez de um Schwarzenegger ou de um Stallone.
Acaba por não ser nada disso, porque o cansaço das voltas e reviravoltas e dos jogos duplos em que toda a gente trai toda a gente (o macguffin é uma lista de agentes ocidentais que nunca é sequer devidamente respeitada como macguffin) instala-se depressa. É um cansaço ampliado ao insuportável pelo “encher o olho” de uma realização que nunca pára o tempo suficiente para dar ao espectador tempo de se orientar, que parece usar uma banda sonora de greatest hits dos anos 1980 (New Order, Siouxsie, A Flock of Seagulls, Depeche Mode, Bowie…) para fazer fogo de vista. Talvez seja pelo melhor: se o espectador se orientasse, era capaz de perceber que a coisa não faz praticamente sentido nenhum e a única coisa que interessa é o corpo de Charlize em movimento contínuo.
A esse respeito convirá esclarecer que Atomic Blonde não é totalmente desprovido de ideias: há uma luta extraordinária na caixa das escadas de um prédio, filmada praticamente em tempo real e plano-sequência único, que nos faz sentir como raras vezes o impacto visceral de cada soco, golpe, tiro, e a vontade desesperada de sobreviver a todo o custo que os filmes de espionagem quase nunca mostram. Mas é uma cena só, deslocada num filme que na maior parte do tempo se parece com um mash-up sacrílego entre Brian de Palma e Tony Scott e não tem problemas em sacrificar a consistência narrativa e a entrega da sua vedeta a um arraial de cenas de porrada vistosas. Já vimos muito pior — e, sim, só Charlize justifica o preço do bilhete —, mas isso não torna Atomic Blonde recomendável.