A série onde os medricas não entram
Os Pequenos Vagabundos de Pierre Gaspard-Huit estreou-se na RTP, no início da década de 1970.
Pelo menos uma vez na vida, todas quisemos ser a Marion de Os Pequenos Vagabundos – O Tesouro do Castelo sem Nome.
Não por causa dos longos cabelos loiros ou dos lindíssimos olhos esverdeados de Béatrice Marcillac – a actriz que a interpretava na série televisiva, que se estreou na RTP, no início da década de 1970 –, até porque naquela época, em Portugal, a televisão era ainda a preto e branco.
Só mais tarde, nos anos 1980, quando voltou a ser exibida, vimos a cores a série franco-belga-suíça-canadiana realizada por Pierre Gaspard-Huit (que curiosamente tem no seu currículo um filme intitulado Lavadeiras de Portugal e mais tarde, em 1974, a série Paul et Virginie).
O que nos fazia querer ser a canadiana Marion Nooligan, a quem chamavam Marion-des-Neiges, era ela ser a única rapariga num bando de rapazes e parecer tão destemida.
Eles eram adolescentes corajosos que lutavam em cima de bicicletas, como se fossem cavaleiros de outra época. Subiam penhascos e torres de abadias nas Ardenas belgas agarrados a cordas com imensa facilidade, a mesma com que percorriam túneis húmidos de castelos abandonados em busca de um tesouro escondido pelos templários.
Enfrentavam ladrões malfeitores e raptores de crianças com armas a sério e escondiam-se, sem medo, dentro de armaduras antigas. Citavam Virgílio, sobreviviam a coisas terríveis como serem crucificados e apaixonavam-se naquelas férias pela primeira vez.
Tudo isto decorria em oito episódios, de 30 minutos cada, que começavam quando o parisiense Jean-Loup (interpretado por Philippe Normand) era surpreendido pelos pais que o mandavam para um campo de férias nas Ardenas belgas, em plena floresta, em vez de ir para a habitual praia com os amigos de sempre.
É na Bélgica que Jean-Loup conhece Cow-Boy (Marc di Napoli), que era um ás a lançar o laço, Byloke (Jean-Louis Blum) e Lustucru (François Mel). Os rapazes, já repetentes no campo de férias, pertenciam ao clube Javalis que tinha uma regra de admissão: para se entrar não se podia ser medricas.
Ora, é claro que depois de uma série de provas dificílimas, como, por exemplo, dar duas voltas à pista de kart de olhos vendados), o nosso herói moreno de olhos verdes, Jean-Loup, entra.
Desafiados por um professor, os rapazes do campo de férias partem para uma corrida ao tesouro: se decifrarem um criptograma num manuscrito antigo, descobrem o esconderijo de uma reserva de ouro escondida pelos templários. É nessa busca de um tesouro verdadeiro que os Javalis se encontram com os outros três do grupo – Patrick (Thierry Bourdon), Franz (Frédéric Néry) e Marion – que andavam a cavalo e tinham um pastor-alemão.
E é lá para o episódio 6, intitulado O Fio da Meada, quando se preparam uma vez mais para enfrentar os malfeitores e decifrarem o enigma do tesouro escondido, que acontece a cena em que todas sentimos orgulho em Marion e que tem este diálogo:
Jean-Loup – Voltaste?
Marion – Sim. Não gostas?
Jean-Loup – Sim. Mas a expedição é um pouco arriscada e ...
Marion – Tens medo por mim?
Jean-Loup – Sim, um pouco. Este não é o lugar mais indicado para uma rapariga.
Marion – Se eu fosse um rapaz, já não havia problema, não era? Levavas-me contigo?
Jean-Loup – Sim.
É então aí que Marion o desafia. A rapariga apanha os seus longos cabelos loiros e esconde-os dentro de um boné de bombazina cinza que enfia na cabeça. Olha o rapaz fixamente mostrando que está pronta para tudo.
Jean-Loup esboça um sorriso. E nós passamos a acreditar, para todo o sempre, que entrar no clube dos rapazes e sobreviver num mundo de homens afinal era possível: bastava recorrer ao truque de Marion, esconder os longos cabelos dentro de um boné.
Até hoje andamos todas a tentar encontrar um boné de bombazina como aquele.
Esta série é publicada à segunda-feira e à terça-feira, Próxima: Uma Família às Direitas.