Para Kiluanji Kia Henda, a cidade é uma miragem

Um dos artistas angolanos de maior circulação internacional inaugurou uma nova exposição em Lisboa, A City Called Mirage, interrogando as grandes cidades, tão desertas quanto virtuais.

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Rusty mirage (the city skyline), fotografias de esculturas realizadas no deserto de Al Zaraq, na Jordânia Kiluanji Kia Henda

Com um relevante percurso internacional, o angolano Kiluanji Kia Henda, 35 anos, finalista do BES Photo em 2011 e com várias exposições em Portugal, individuais e colectivas, regressa agora a Lisboa com A City Called Mirage, inaugurada na galeria Filomena Soares, onde estará patente até 29 Novembro.

O seu trabalho interroga o mundo hoje, com um cunho tão político quanto poético, fecundado de humor. Não lhe interessa um ponto de vista documental, mas manipular o que é documental para que isso possa ser usado nas suas narrativas.

É um contador de histórias. Nesta exposição reflecte sobre as cidades, divididas entre a desertificação e quimeras de virtualização, promovendo relações entre deserto e arquitectura. “Este trabalho começa com uma fixação no deserto, a partir de várias viagens que realizei pelo Namibe, em Angola”, diz-nos, acrescentando que para esta exposição foi importante “a paixão pela arquitectura” e “encontrar maneiras de falar das novas cidades". "Foi daí que surgiu a ideia de trabalhar com estruturas em ferro que remetem para a ideia de cidade mas também para as ruínas da própria cidade.”

Numa dessas deambulações pelo deserto, deparou-se com um letreiro de metal enferrujado onde se lia “Miragem”. Foi a partir daí que tudo se desencadeou. A palavra viria a tornar-se símbolo e ponto de partida para uma série de trabalhos, com a cidade do Dubai a servir de alavanca, embora pudesse ser Singapura ou Luanda, por exemplo. O Dubai, ainda assim, talvez seja o território que melhor sintetiza o aspecto ilusório da miragem. Numa das peças, Kiluanji Kia Henda recorre mesmo ao humor, propondo um manual de instruções para criar uma espécie de Dubai particular em casa.

São pequenas instalações que fiz em casa a partir da ideia de artificialidade”, reflecte ele. “A Palm Island que fiz com fósforos e coloquei na pia é tão artificial como a verdadeira Palm Island do Dubai. Ironizo com os limites da artificialidade, ao mesmo tempo que exponho um paradoxo, porque tudo o que está nesta peça é íntimo e pessoal, da casa de banho à cozinha, e para mim o Dubai é uma cidade longe dessa escala íntima. Fora da escala humana, inclusive. Então trouxe isso tudo para dentro de casa.”

O humor que alguns dos seus trabalhos exibem não constituiu um programa deliberado. "Acaba por fluir porque tem também a ver com a forma narrativa como gosto de contar as coisas e ajuda-me a encontrar metáforas”, afirma, ao mesmo tempo que se revela pouco apologista de um discurso directo. “Gosto de pensar na arte como esse espaço que posso manipular, porque está num campo que é o da ficção. E, por outro lado, em certos trabalhos conceptuais o humor é também uma forma de fazer entrar as pessoas no trabalho.”

Como tem acontecido no passado recente, os trabalhos expostos não possuem formatos claramente delimitados. São ao mesmo tempo fotografias e esculturas, performance e vídeo, ficção e registo documental. Um dos exemplos desse enfoque múltiplo é Rusty mirage (the city skyline), fotografias de esculturas realizadas no deserto de Al Zaraq, na Jordânia.

Um novo deserto
O deserto interessa-lhe pela dimensão fictícia. Pela aparente ausência de História. Por ser uma espécie de folha em branco. E pelos possíveis paralelismos com os vazios das sociedades contemporâneas. “Se somássemos as casas vazias que existem na Europa, na China ou em novas cidades de África e da América do Sul, estaríamos perante um novo deserto”, ri-se. Daí decorrem interrogações sobre arquitectura e bolhas imobiliárias. “É que hoje a habitação tornou-se numa mercadoria e muitas vezes um espaço vazio torna-se mais rentável do que se estiver habitado, o que acaba por ser muito perverso”, afirma.  

Na actualidade, diz, concebem-se cidades inteiras sem existir grande trabalho de reflexão sobre as especificidades dos lugares. “No fim de contas, o que está em causa são os modelos de desenvolvimento que desejamos para as nossas sociedades. E quando pensamos nas cidades é ainda mais agressivo, porque não estamos a falar de uma tendência que contamina uma cidade: estamos a falar da criação da própria cidade.”

A questão é que essas cidades acabam muitas delas por não ter vida urbana. “São cidades, em parte, quase vazias. Vislumbramos torres e outras obras de grande atrevimento tecnológico, mas a cidade não funciona. Tem um lado decorativo. É um postal.”

Artista de circulação global, Kiluanji Kia Henda faz parte de uma nova geração de criadores angolanos que não faz depender da nacionalidade a legitimação da sua actividade, embora esteja atento ao que se passa no seu país. Integrou, por exemplo, a colectiva do ano passado dedicada à nova arte angolana, No Fly Zone, que esteve no Museu Berardo em Lisboa, ao lado de artistas como Edson Chagas, Yonamine ou Nástio Mosquito.

Diz que, durante a guerra em Angola, muita gente da sua geração foi estudar para os mais diversos locais do mundo. Hoje muitas dessas pessoas estão a regressar. Entre elas, alguns artistas. “É imprevisível saber o que esperar dessas pessoas, porque têm referências diferentes e estiveram em locais diversos”, afirma.

Uma coisa é certa: para todos eles o mercado internacional continua a ser determinante, porque Angola ainda está "num processo de formação de público ou de novos coleccionadores, e isso leva tempo”, reflecte. “Mas desde sempre, independentemente de Angola, percebi que uma das formas de o meu trabalho crescer é ser apresentado em vários contextos.” Agora, em Lisboa.

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