Os criados e Marie Antoinette

É como se Upstairs/Downstairs, a série da BBC sobre os Bellamy e os seus criados, estivesse a olhar para Marie Antoinette, o filme de Sofia Coppola. Mas ficando à porta: sem se materializarem quer o edifício de um voyeurismo cúmplice - que reforça as contradições de classe -, quer o alheamento trágico de um mundo fechado à beira do colapso.


Benoît Jacquot adapta o romance homónimo de Chantal Thomas, que ficcionou a personagem de Sidonie Laborde (Léa Seydoux), uma leitora privada de Marie Antoinette (Diane Kruger). Segundo os historiadores, Sidonie nunca existiu e Jacquot aproveita também a liberdade da ficção utilizando os serviços de uma jovem actriz para interpretar uma personagem que no livro de Thomas é uma cinquentenária.

Em 1789, a palavra “Bastilha” começa a ser sussurada de forma ameaçadora nos corredores de Versailles, a corte continua alheada; como que atraindo, sem o saber, o golpe da derrocada - como crianças num quarto de brinquedos, visão que Sofia Coppola aproveitou, também, como corrente de ar a soprar sobre o seu bolo de noiva.

Neste cenário, Sidonie mantém a lealdade à sua rainha, como se isso a protegesse do que ameaça de fora, enquanto é testemunha silenciosa da amizade entre Marie Antoinette e Gabrielle de Polignac/Virginie Ledoyen (uma amizade tintada de homossexualidade, segundo a obra de Chantal Thomas, o que, segundo alguns historiadores quando o livro foi publicado, em 2002, é uma leitura abusiva.)

Esta é a descrição de um gineceu. Mas é mesmo isso: descrever, sem criar mundo, sem entrar no mundo. Sem se comprometer: nem com a sensualidade feminina, nem com o voyeurismo, nem com a rivalidade e cumplicidade entre os que coabitam um microcosmos. Os planos mostram que uns olham os outros, porque os planos são montados uns ao lado dos outros. Mas falta olhar neles, falta olhar para quem olha. Vê-se à superfície o que deve ser lido, mas não irrompe de dentro; não belisca, sequer, o guarda-roupa.

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