Tundra de perdição

Baseado em acontecimentos reais que não sabe explorar, Kholat perde-se na execução de processos basilares.

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Início de Fevereiro, 1959. Um grupo de estudantes decide explorar os Montes Urais. Não regressariam para narrar a aventura pela própria voz. De curiosidade afilada pelo enigma, é fácil ter-se fortes imagens deste duradouro mistério, tal como quando se lê um livro se sai para regressar à humanidade horas mais tarde.

É uma situação trágica que ganha contornos peculiares quando começaram a ser relatados alguns pormenores das circunstâncias. A tenda terá sido cortada a partir do interior. Alguns membros não terão tido tempo de se vestir antes de enfrentarem a pé temperaturas negativas. Quando encontrada, uma das estudantes não tinha língua nem olhos. Um grupo de alpinistas terá avistado à distância estranhas esferas de tom alaranjado no céu. As roupas de alguns estudantes estavam contaminadas com elevadas doses de radioactividade, segundo os testes forenses. Alguns membros do grupo terão morrido, não de hipotermia como a maioria, mas sim de lesões fatais, lesões que não poderão ter sido infligidas por outro ser humano, tal foi a força exercida nos golpes.

O acampamento foi montado na Kholat Syakhl, montanha que fica no Norte dos já mencionados Montes Urais. A produtora polaca IMGN.PRO reconheceu o potencial e a liberdade criativa que esta situação lhe concedia, transformando-a em Kholat, videojogo que pretende dar definição às imagens que crepitam na imaginação de quem leu sobre o mistério, como se fosse a adaptação cinematográfica de um livro.

Chegamos à estação ferroviária anos depois do incidente, determinados a explorar e a desvendar o que terá acontecido. Sem nunca esperar pela frente a explicação definitiva do sucedido, somos confrontados com uma construção fantástica apoiada no que já se sabia, ou seja, Kholat nunca pretende ser um documentário, mas sim uma proposta de entretenimento baseada em acontecimentos reais.

Menos jogo de terror e mais aventura salpicada por fenómenos, é uma obra que nos faz explorar vários pontos do mapa segundo um ritmo ditado por quase uma dezena de locais principais e outros tantos avanços narrativos. Nos seus meandros, podemos complementar este unir de pontos com vários documentos espalhados pelo cenário, páginas de diários, enfim, processos já testados em diversas obras, mecânicas que não inovam e que vão tentando renovar o interesse de quem joga, com maior ou menor eficácia.

A produtora não conseguiu construir um edifício interessante e intricado, algo que é notável dada a qualidade dos alicerces. Em vez disso, somos contemplados com um arco sobrenatural, experiências científicas que correram mal, efeitos secundários de uma longa jornada exposta à solidão. Portanto, nunca chega a ser inquietante, ou uma versão ficcionada dos acontecimentos que lateje na cabeça de quem joga na hora de a pousar no travesseiro.

Apresentado na primeira pessoa, temos pela frente um mapa de tamanho médio aberto à nossa exploração, linhas brancas indicam possíveis caminhos. Na parte esquerda uma lista com várias coordenadas a visitar, na mão uma bússola. E assim começamos a forjar a nossa aventura numa dança que ao fim de cinco horas está coreografada de forma autónoma e maquinal.

Olhar o cenário à nossa volta, tentar reconhecer pistas visuais, abrir o mapa, olhar a bússola. Dezenas de vezes, as que forem necessárias. Normalmente, este tipo de cenários indicam a posição da personagem no mapa; Kholat optou por remover esse mecanismo, ou seja, o saber onde se está é substituído pelo pensar onde se está, algo que não resulta na prática, contaminando outras componentes do videojogo, escalando até ser predominante, afirmando-se em diversas situações como a única mecânica que nos ocupa o pensamento.

A intenção da IMGN.PRO é interessante: a confusão está aqui para ser dissipada, para que chegar a um determinado local seja uma conquista do valente jogador que navegou o cenário desconhecido e não foi detido pelo denso, pelo nevoeiro cerrado que a incerteza instala prontamente no discernimento. Sim, como se a confusão fosse vilã.

Kholat conjuga o verbo pensar. “Penso que estou aqui”; “Penso que é por aqui”; “Penso que o objectivo C é aqui perto”. É a aproximação, a aguda frustração de se pensar que se está, a punitiva sensação de falhar o planeamento, e algumas vezes desaguar na foz desejada, mas seguindo um rio diferente do pensado. Chamemos-lhes pequenos laivos de sorte que raiam no meio do sentimento tempestuoso.

Certamente inspiradas nos relatos já descritos, o jogo coloca no nosso caminho entidades etéreas e alaranjadas. Espectros que se movem pelo cenário. Alguns perseguem-nos, atacam-nos, matam-nos com um toque. Por algumas vezes, passei minutos a orientar-me no mapa, seguindo algumas pistas visuais, quando fui perseguido, correndo por aqui e por ali; fugindo sem destino enquanto tentava despistar a ameaça de ocasião, recomeçando o processo de orientação quando a fuga terminava.

Existem algumas tendas espalhadas pelo mapa, pontos seguros que permitem viajar automaticamente entre eles e que gravam o nosso progresso. Não menos importante, ficam assinalados no mapa, tal como os locais principais da narrativa ou os vários coleccionáveis. É verdade que ajudam como referências à exploração, mas estão muito, muito longe de tornar a experiência menos penosa.

O progresso podia ser desafiante sem ser injustamente penalizador, algo que é sublinhado por um trecho do mapa onde, sem aviso prévio, a neve cede e a personagem cai sobre estacas afiadas de madeira, ficando empalado. O resultado, sem grande surpresa, é a sua morte e o retomar da aventura a partir da última vez que o progresso foi gravado. Também sem grande surpresa, analisar onde colocamos o pé não é propriamente fácil quando estamos a ser perseguidos.

Tendo-me demorado entre cinco e seis horas nestes desígnios até terminar o jogo, de Kholat fica a sensação predominante de custo. Os momentos inspirados são esparsos e deglutidos pelo cansativo investir contra a exploração do mapa: como abrir caminho por densas silvas com uma lâmina romba.

A cenografia apresenta alguns momentos inspirados. A candura da neve é ocasionalmente cortada por visitas a cavernas dantescas, passagens por uma floresta que se apresenta ameaçadora desde a primeira passagem do olhar. Mais que as texturas, são os efeitos que lhe dão uma aura de adversidade.

Os flocos de neve em valsa própria, o jogador como corpo deslocado na tundra. Quando está noite, o branco, o cinzento e o azulado dão lugar ao negrume inequívoco. É uma atmosfera que nunca sorri; nunca, independentemente de onde estiverem perdidos, acolhe como os cenários do quotidiano de cada um. É aterrador pensar que poderá ter sido um cenário parecido com este o último testemunhado por aquele grupo de estudantes.

Publicado em PC em 2015, Kholat chega agora à PlayStation 4 e não é um departamento gráfico apresentado sem mácula, particularmente os soluços da framerate, que apresenta quebras facilmente notórias depois de carregar o cenário. Não arruína completamente o que se sente quando se olha, mas está lá, servindo como prova de uma optimização que poderia ter sido melhor.

Os avanços da trama são narrados por Sean Bean, actor que interpretou Boromir em O Senhor dos Anéis ou Ned em A Guerra dos Tronos. Ainda que a sua prestação não desiluda, é pena que não tenha sido melhor aproveitada pela produtora, nomeadamente na escassez das suas intervenções.

Tal como os efeitos gráficos, são também assinaláveis os efeitos sonoros, colocados ao serviço de um desassossego, de um zumbido que transmite a urgência em sair daquele mundo, como se o próprio mundo estivesse a ruir à nossa passagem, assim que lhe viramos as costas. Somos sempre um estrangeiro.

Kholat tem raízes num tema que promete pelo fascínio que o mistério detém, mas nunca chega a ser frondoso. É uma expedição espinhosa que não consegue mostrar um trajecto aguerrido, que trabalhe a imaginação e a curiosidade de quem joga. É uma obra que a muito custo consegue invocar na prática o que lhe serviu de inspiração, deixando-o escapar na hora de criar recordações.

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