Terror psicológico a preto e branco (e encarnado)

Neverending Nightmares tem uma apresentação gráfica excelsa capaz de traçar um visual memorável, ou seja, o antípoda da jogabilidade.

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Chegando nos seus momentos mais inspirados a fazer lembrar ligeiramente o trabalho de Junji Ito, Neverending Nightmares será recordado pelo seu estilo visual, conseguindo dissipar o supérfluo e colocando à frente dos nossos olhos a essência rendilhada e trabalhada ao pormenor. O grafismo pretendia servir o terror psicológico, mas acaba por suplantá-lo, deixando o jogador mais embasbacado com a aparência do que com a substância.

Publicado originalmente no PC em 2014 e recém-chegado à PlayStation 4 e à PlayStation Vita, em Neverending Nightmares somos temporariamente Thomas, um jovem aprisionado num turbilhão de pesadelos. Como numa matriosca de calafrios, vamos testemunhando esta sequência aterrorizadora de realidades fabricadas, unidas por alguns pontos em comum que transmitem a sensação que os pesadelos de Thomas evoluem em ramificações contidas dentro daquele universo.

Esses pontos em comum passam pelo cenário, mas sobretudo por uma segunda personagem que assume vários papéis no subconsciente do protagonista. Pensamos que é sua irmã, mas o jogo troca as voltas às certezas e apresenta-a como mulher e até filha de Thomas, ou seja, percebe-se que esta criatura enigmática foi sobretudo alguém que o marcou profundamente, de tal forma que não há forma de sacudir a sua presença da sua consciência.

Acompanha-se o arco narrativo com a curiosidade de ver até onde vai a obra da Infinitap Games, algo que só é completamente saciado se estiverem na disposição de verem os vários finais que o jogo tem. Aproximadamente quando se chega à marca dos dois terços, o jogo abre-se em caminhos distintos que acabam por conduzir a um de três finais possíveis. Felizmente, quem estiver disposto a testemunhar tudo o que a obra tem para oferecer pode escolher o pesadelo a jogar e ajustar o seu comportamento para alterar o desfecho.

Não se pode afirmar que se gastam horas para ver os finais diferentes, contudo, também não se pode afirmar que sejam tão ricos ou vastos que o justifiquem completamente. Não quer dizer que não sejam distintos ou que se escusem a temáticas carregadas de emoção, porém, poderiam e deveriam ser mais recompensadores. É claro que lidar com as mazelas de perder alguém é retumbante, mas os outros dois são muito pálidos em comparação. Independentemente do número de finais que vejam, haverá sempre abertura para a interpretação de cada um.

A falha de Neverending Nightmares não está em abrir à interpretação a raiz destes avanços e recuos narrativos, mas sim na forma como conduz o jogador durante a sua longevidade. É certo que há momentos de genuína tensão, particularmente nos momentos áureos em que são conjugados o grafismo e a sonoplastia, todavia, outros há em que parece uma obra de terror em piloto automático.

É possível interagir com objetos destacados a cores além do preto e do branco, mas é um processo que se manifesta escassamente, o que atribui ao jogador a tarefa de vaguear pelos cenários, tentando a sua sorte errante pelos caminhos que a obra disponibiliza. Há várias criaturas que saem ao caminho, mas nunca se apresentam com um verdadeiro perigo ou desafio. O leque é escasso, pelo que não demora muito a estudarem-lhe os movimentos e investidas. E mesmo que o desfecho seja a morte brutal do protagonista, a produtora foi incrivelmente generosa com os pontos de gravação temporária.

Se a jogabilidade é desenxabida, o grafismo excede as expectativas, apresentando todos os cenários pejados de pormenores e, sobretudo, criando uma atmosfera única e carismática. Se já tiveram oportunidade de ver o vídeo ou as imagens incluídas neste texto, terão uma ideia aproximada da temática e do estilo.

Seja na habitação, no asilo psiquiátrico ou nas breves áreas exteriores, a combinação do traço que parece rasgar ao acaso uma folha branca com os apontamentos noutras cores, especialmente o encarnado do sangue, é eficaz e original na hora de passar sensações desconfortáveis e urgentes. A variedade dos cenários podia ser maior, mas o que faz, Neverending Nightmares faz bem.

Além de lhe dar aura autoral, este género – tanto na concepção como na execução – é o que patrocina os momentos de tensão já mencionados. Em determinados pontos, o negro preenche quase a totalidade do ecrã, o que aliado a sons suspeitos e a uma elevação da sonoplastia fará certamente suar as palmas de muitas mãos.

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No píncaro do sádico e da perturbação visual, vemos o protagonista de machado na mão, vemos as nossas entranhas puxadas, vemos pormenores alumiados por uma vela encarnada e todo o desconhecido advindo, vemos ainda Thomas puxar uma veia do próprio braço como se estivesse a abrir um fecho, montes com corpos empilhados, bonecas com rostos vazios, vemos criaturas que marcam mais pelo design do que pela ameaça – o que vemos e o que fica é o choque do desenho ao serviço da ilustração da perturbação.

Um parágrafo final para o som, particularmente para a respiração de Thomas que, à laia de ser asmático, é ensurdecedora na aflição. A banda sonora também está em destaque, com sons melhor escutados de auscultadores e com grunhidos que indicam a partilha do cenário com uma ameaça.

Neverending Nightmares propõe-se a dar uma nova camada de brilho ao género tão em voga do terror, jogando o seu trunfo no departamento técnico, o que lhe vale um grafismo inspirado e memorável. Infelizmente, o seu cômputo geral não é equilibrado, com as mecânicas da jogabilidade a não serem refinadas, a parecer que não houve diálogo entre toda a composição, saindo daqui de olhos arregalados, mas de coração vazio.

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