Jogar o angustiante bloqueio criativo

Silence, o primeiro episódio de The Lion’s Song, é curto e gratuito. Há o subdesenvolvimento na hora do fim, a angústia criativa expressa pelo todo.

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Usando a música como veículo, Silence, o primeiro episódio de The Lion’s Song, traz à tona o sofrimento para criar, a pressão que pode ser exercida sobre quem tenta muito a partir de muito pouco, de nada. É curto e gratuito, é uma escola sobre o que poderão ter sido os bastidores das grandes peças que são desfrutadas pensando-se apenas no que despoletam no receptor e não no que despoletaram no emissor.

Ao longo de aproximadamente uma hora acompanhamos a vida de Wilma, uma compositora num colete de forças criativo. É uma jovem promessa que se equaciona com o que será preciso para se tornar uma afirmação; quer e precisa de compor música nova, sente-se a vontade próxima da faísca criativa, sim, mas sente-se ainda mais a angústia de estar próxima do chispar iminente e esse iminente parecer tijolo à sua volta.

Se Wilma quer superar-se, Arthur, o seu mentor, quer ainda mais. Está disposto a praticamente tudo, até a arranjar-lhe uma estadia de uma semana numa cabana isolada no meio da floresta, onde decorre o trecho principal do episódio. Ameaça chover quando a vê ao longe, chove enquanto está lá dentro, sozinha e ligada ao mundo por um telefone inoportuno.

Wilma chega e fica e nós ficamos com ela, clicando com o ponteiro do rato em tudo o que é cenário, com The Lion’s Song a mostrar a sua essência de aventura Point and Click ligeira. Não demora muito a percebermos que estamos ali para ajudar Wilma a compor o que lhe falta, sobretudo nas partes em que temos que resolver os sons que a incomodam e nos objectos em que temos que clicar para lhe desbloquear o descorrimento criativo.

O jogo da Mi'pu'mi Games consegue fazer o jogador sentir-se parte integrante daquele progresso, ou seja, quando a música estiver concluída e a ouvirmos, sabemos que aquelas pessoas sentadas na plateia estão a ouvir algo composto por Wilma, mas que tem em nós o mecenas da sua criatividade. Independentemente de onde joguem, parte de vocês sobe àquele palco austríaco no início de 1900.

Além deste trabalho de investigação do cenário à procura de itens úteis, The Lion’s Song vive sobretudo das ligações emocionais demonstradas na sua breve narrativa. Seja com Arthur, com um misterioso hospedeiro que se faz anunciar pelo telefone, pela família da protagonista, enfim, pelas restantes peças do puzzle que não se escusa a adornar a trama com alguns momentos e personagens misteriosas.

O problema do jogo é que tenta fazer tudo isto em aproximadamente sessenta minutos, o que acaba por ser pouco tempo para deixar o interesse do jogador levantar fervura. Há alguns momentos inspirados, contudo quando chega o final sente-se que todo o trabalho de edificação de personalidade estava finalmente a entrar na fase do percurso em que estas ligações atingiram a maturidade, colhendo os frutos do que pede ao jogador.

É um título que pede ajuda e mostra cenas que deixam muito por responder, sonhos que são os amores de Wilma em abordagem à pista sem nunca chegarem a aterrar. Queria saber mais sobre o irmão de Wilma e da sua família, queria saber, afinal, quais são as intenções do seu mentor, que tanto lhe arranja uma cabana para ela compor, como lhe liga imediatamente depois a dizer que já lhe marcou um concerto – não há pressão, Wilma, apenas tens que compor o teu melhor trabalho e chegar a uma meta traçada em antecipação.

Independentemente deste aquém, The Lion’s Song acerta algumas vezes, algo que está ligado à atmosfera criada e a uma escrita que não tem dificuldade em manter o interesse de bom grado: fica-se à espera que o castelo de cartas caia ou se equilibre depois de o sopro logo no início de Silence. Impera mencionar que a intenção da produtora é que o episódio seja concluído mais do dque uma vez, algo comprovado em algumas escolhas de diálogo que podemos fazer ao longo da curta aventura e que revelam ramificações narrativas ajustadas.

Ainda assim, as personagens – com o destaque a ser dado sem grande surpresa a Wilma – emanam personalidade e carisma, algo que está na escrita já mencionada, mas que vai buscar valores a uma escolha gráfica que colhe dividendos. Apresentar The Lion’s Song num estilo Pixel Art, ou seja, a imitar os videojogos idos, foi uma decisão inteligente e que, sobretudo, serve perfeitamente para exibir algo memorável.

Ter um grafismo Pixel Art obviamente não é sinónimo de qualidade, todavia, aqui encaixa-se bem nos cenários: a cabana em tons acastanhados, a chuva incessante no alpendre, o desenho das personagens, os trovões pelo vidro da janela, de onde se vê também as silhuetas das árvores ao vento; a grande peça final e a cena inaugural em que vemos uma estação de comboio, um cinzelamento gráfico minucioso e combatente de uma estagnação cenográfica.

E claro, sendo um jogo sobre uma jovem compositora, a Mi'pu'mi sabia que este aspecto estaria sob escrutínio. Felizmente para o computo geral da obra, é um campo sem desilusões. Não esperem passar sessenta minutos na companhia de Rachmaninoff, Bach e Mahler, mas os trechos ecoados pelos auscultadores têm uma qualidade mais que suficiente para alicerçar de forma convincente uma obra que é uma rotunda musical.

No segundo episódio, Anthology, acompanharemos um jovem com “um dom único”. Ainda não há data de lançamento, mas será interessante perceber que ligações terá com este capítulo de estreia, apesar de ser uma narrativa independente. Isoladamente, Silence não é um arranque fraco, mas sim um início que poderia ter sido mais, uma vez que os ingredientes estão todos lá.

Wilma consegue ser um enigma com uma estadia especial e paixões fortes pela música e não só. Há o grafismo e a sonoplastia e todos esses componentes, mas há também a mensagem de angústia e de pressão, do querer fazer, da mordaça da mente ter planos diferentes da mente, de sabotar-se, de discordar e lutar para que a criação venha de um lugar profundo: a criação a chegar do medo da criação.

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