Portugal vai acabar com práticas de expulsão de criminosos para Cabo Verde

Cerca de 65% das deportações são feitas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e não passam pelo crivo dos tribunais. A situação de deportações feitas de forma desumana, sem ter em conta a existência de ligações familiares no país, foi denunciada pelo PÚBLICO.

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José Carvalho de Pina esteve preso em Portugal por tráfico de droga. Foi expulso em 2012 Rui Gaudêncio

O primeiro-ministro, António Costa, anunciou nesta sexta-feira que, em breve, o Estado português vai acabar com a prática de expulsar para Cabo Verde cidadãos da comunidade cabo-verdiana residentes no país que cometam crimes em território nacional. O PCP já tinha apresentado um projecto de lei no mesmo sentido. A situação de deportações feitas de forma desumana, sem ter em conta a existência de ligações familiares no país, foi denunciada pelo PÚBLICO na reportagem Devolvidos a Cabo Verde.

A decisão foi anunciada por António Costa no final de uma reunião que durou mais de uma hora em São Bento com o primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva. "Vamos pôr termo a uma prática recentemente introduzida de aplicação de penas de expulsão para cidadãos cabo-verdianos residentes em Portugal. Nesta relação de fraternidade, entendemos que, se os crimes são cometidos em Portugal, as penas também devem ser cumpridas em Portugal", declarou o primeiro-ministro, citado pela agência Lusa.

António Costa considerou mesmo esse tipo de práticas "como desumanas e que não contribuem para a reinserção social" do cidadão que cometeu o crime. "Não podemos transferir problemas gerados por uma comunidade para um país irmão. Iremos resolver essa situação tão breve quanto possível", acentuou o líder do Executivo.

Mas fica por esclarecer se estarão incluídas nas futuras limitações à deportação anunciadas por António Costa as expulsões administrativas (que representam 65% das deportações) decididas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), e não apenas as expulsões judiciais decretadas pelos tribunais, e se a medida abrangerá outros países para onde Portugal expulsa estrangeiros, como é o caso do Brasil.

Na reportagem que o PÚBLICO divulgou a 21 de Fevereiro dava-se conta dos efeitos de uma alteração legislativa, introduzida em 2012, por iniciativa do Governo de coligação PSD/CDS-PP, à lei de estrangeiros de 2007. Até aí, os estrangeiros não podiam ser expulsos do país se tivessem nascido em Portugal, se aqui vivessem desde antes dos dez anos e se aqui residissem, e quem tivesse “a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa ou estrangeira, a residir em Portugal, sobre os quais exerçam efectivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”.

Com a mudança, estes limites à expulsão podiam ser ignorados, caso estivesse em causa “a segurança nacional ou a ordem pública”. A advogada Susana Alexandre, ouvida na reportagem, chamava à expressão “um enorme buraco negro”. “O entendimento actual do SEF é o de que qualquer pessoa que foi condenada atenta contra a ordem pública.” A lei foi aprovada com os votos a favor do PS e os votos contra do PCP e do Bloco de Esquerda.

“Condenação para a vida”

O Partido Comunista Português já apresentou um projecto de lei para repor estes limites à expulsão de cidadãos estrangeiros do território nacional. A proposta, admitida no Parlamento a 25 de Maio, tem como objectivo que as regras que permitem a expulsão de cidadãos estrangeiros que residem legalmente em Portugal sejam de novo restringidas.

“Os cidadãos que têm em Portugal todas as suas raízes familiares devem ser julgados e punidos em Portugal pelos crimes que cometam”, lê-se na proposta. “Não faz qualquer sentido que, com a invocação discricionária de razões securitárias, o Estado Português se arrogue o direito de expulsar cidadãos para países com que estes não têm qualquer outra relação que não seja um vínculo formal de nacionalidade que não corresponde à realidade da vida”, refere-se.

Na reportagem do PÚBLICO, representantes das autoridades cabo-verdianas revelaram que o país tem recebido alguns casos de cidadãos expulsos de Portugal que viviam em Portugal desde crianças, e mesmo de “pessoas [expulsas] que nunca estiveram [em Cabo Verde]. A ministra das Comunidades, Fernanda Fernandes, contou o caso de um sem-abrigo que foi deportado pelo SEF ainda com a pulseira do departamento de Psiquiatra do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde esteve internado um mês antes de ser enviado para Cabo Verde “só com a roupa do corpo”. Tinha nascido em São Tomé e Príncipe e vindo para Lisboa em criança. “A deportação acaba por ser uma condenação para a vida”, dizia a governante.

O PÚBLICO contou também a história de Daniel Sousa Varela, um recluso de 27 anos que está no Estabelecimento Prisional de Setúbal, condenado por furto. Nasceu em Setúbal e tem na cidade duas filhas portuguesas menores, uma de três e outra de oito anos. Foi-lhe aberto um processo de afastamento coercivo pelo SEF, ainda sem decisão de expulsão. Daniel chegou a ter bilhete de identidade português. Nunca esteve em Cabo Verde.

A reportagem centrava-se no caso de expulsões administrativas, que resultam de decisões do SEF. A legislação portuguesa distingue entre as expulsões administrativas, que são da competência do director do SEF, e as judiciais, decididas pelos juízes, que muitas vezes surgem como penas acessórias ao cumprimento do tempo de prisão. Em 2014, Portugal expulsou 402 estrangeiros; 263 foram expulsões decretadas pelo SEF, as restantes foram decididas por juízes.

No caso das deportações de Portugal para Cabo Verde, o director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, explicou na altura que é a permanência irregular que justifica as expulsões administrativas, mas que “provavelmente mais de metade das situações de irregularidade serão de pessoas que cometeram crimes”. No caso de Cabo Verde, sobretudo tráfico de droga.

O que acontece é que muitos reclusos estrangeiros, durante o seu período na cadeia, acabam por ver os seus documentos caducar e ficam em situação irregular. Terminada a pena, acabam por não ter possibilidade de se regularizar, uma vez que a lei portuguesa prevê que está impedido de pedir a nacionalidade portuguesa quem tenha “prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos”. E está impedido de ter autorização de residência quem tenha cometido um crime com pena de prisão superior a um ano.

Segundo os números do SEF, Portugal está, em termos gerais, a deportar cada vez menos, a par do decréscimo do número de imigrantes a viver no país. O Brasil mantém-se de longe como primeiro destino de expulsão desde há dez anos, a decrescer; Cabo Verde, o segundo. De 2010 a 2014 foram expulsos 240 cabo-verdianos de Portugal.

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