Da patética e nefasta farsa da avaliação dos docentes universitários

É possível ser classificado como excelente fazendo apenas “gestão” (e mais nada), a única actividade que pode ser considerada não inerente à função de docente universitário.

Finalmente, dirão alguns. De facto, do esforço de dezenas (centenas?) de docentes durante centenas (milhares?) de horas distribuídas por mais de dez anos resultou um “sistema” de avaliação curricular dos docentes universitários. Na minha universidade/faculdade está assim finalmente a decorrer a avaliação das actividades docentes referentes aos anos 2004 a 2014, à qual os meus comentários dizem respeito. Uma análise mais abrangente do que se passa nas outras faculdades, por interessados mais qualificados, dará certamente a conhecer outros aspectos chocantes.

Sem querer desmerecer o grande esforço de tantos colegas, considero que este “sistema”, feito à revelia dos conceitos básicos de avaliação internacionais, pode ser útil para afagar o ego de uns quantos, mas causará danos às universidades nos próximos anos. O “sistema” não avalia de facto. Valoriza o dar muitas aulas ou orientar alunos, participar em muitos júris académicos, ter muitos “cargos” de director ou presidente ou membro de qualquer coisa, etc., mas sem avaliar se essas actividades foram ou não bem desempenhadas. Devo acrescentar que o desempenhar muitas actividades, actualmente considerado por muitos como factor de “importância”, resulta frequentemente em ineficácia e incompetência, não se conseguindo produzir com qualidade em tempo útil.

Já publicar artigos científicos, uma das poucas actividades realmente avaliada e importante em termos internacionais, pouco conta para a avaliação (contribui no máximo com 144 pontos, ver abaixo). E assim, docentes com uma actividade curricular que os orgulharia (e empregaria) em países como os Estados Unidos, Canadá, França ou Alemanha não conseguem necessariamente pontuação para “excelente”. Por outro lado, docentes que nunca produziram uma publicação científica de qualidade e/ou nunca orientaram um doutoramento conseguem a classificação de excelente. Após mais de 30 anos a considerar, a par de muitos outros, que os docentes universitários devem contribuir para a produção e disseminação de conhecimentos, investigando e publicando os seus resultados, é desanimador ser desmentido por um patético regulamento.

O “sistema” é baseado num regulamento, que se estende por várias páginas e define uma avaliação dividida em quatro vertentes: investigação, ensino, transferência de conhecimento e gestão universitária. Simplificando, são obtidos pontos em cada vertente e a avaliação global resulta de uma média ponderada dos pontos obtidos nas vertentes. A classificação final pode ser de excelente (mínimo de 315 pontos), relevante, suficiente ou inadequado. Cada vertente é classificada com critérios (estanques) e tetos de pontuação. Os tetos da vertente investigação são extremamente baixos, o que faz com que docentes com níveis muito diversificados de produção científica obtenham pontuações semelhantes e não sejam diferenciados. O máximo de pontos que se consegue na vertente investigação é 222 (esta vertente contribui no máximo com 60% para a avaliação global). A situação é semelhante nas vertentes ensino e transferência de conhecimento. Já na vertente gestão, é teoricamente possível obter 330 pontos, apesar desta vertente só contribuir com um máximo de 30% para a avaliação global. Ou seja, pasme-se, é possível ser classificado como excelente fazendo apenas “gestão” (e mais nada), a única actividade que, ao contrário das outras três, pode ser considerada não inerente à função de docente universitário.

Detalhando e exemplificando, para melhor compreensão: participar em cerca de meia-dúzia de quaisquer comissões ou comissões de acompanhamento de comissões (de curso, ética, estágios, etc.) e participar em 25 júris académicos pode ser suficiente para obter a classificação de excelente (não é preciso investigar nem leccionar). Obter a classificação de relevante, então, é facílimo, podendo bastar a participação numas quatro daquelas comissões (não é preciso investigar nem leccionar). Por contraste e assombro, os melhores cientistas mundiais (eventualmente candidatos ao prémio Nobel) com uma actividade lectiva razoável (digamos, reger uma disciplina e leccionar seis horas/semana) ficariam, ainda assim, longe de obter pontuação para excelente!

Dizer que o “sistema” foi desenvolvido “à medida” será talvez má-língua, mas refiro ainda um dos casos concretos mais aberrantes do dito. Um docente que, por convite, apresente uma conferência num congresso científico internacional obtém 20 pontos. Estas conferências convidadas são consideradas das actividades mais importantes a nível internacional (a par das publicações científicas), pelo que representam de reconhecimento de uma carreira consolidada ou promissora. Além disso, implicam ter resultados de investigação, preparar a conferência, apresentá-la a uma plateia variada de especialistas e estar preparado para responder a questões por vezes difíceis. Em claro contraste, a organização de uma palestra pontual, em última análise convidar um colega para falar sobre a investigação (dele) no nosso laboratório, vale 30 pontos!!! A simples presença num júri de doutoramento, também sem ser preciso abrir a boca, também pode valer 30 pontos.

Ainda não tinha falado da “componente qualitativa” da avaliação que fará parte do “sistema” nos próximos anos. As pontuações obtidas nas vertentes serão multiplicadas por um factor que varia entre 0,75 e 1,25, conforme o avaliador considere as actividades como más ou boas, respectivamente. É pelo menos de ficar apreensivo com a subjectividade acrescentada ao sistema, particularmente num regime que frequentemente privilegia os “amigos” e lambe-botas em detrimento do mérito ou qualificação. Para exemplificar a subjectividade, basta dizer que um mesmo artigo científico poderá ser considerado bom (p.e., publicado numa boa revista) ou mau (p.e., estando o autor a avaliar posicionado algures no meio de meia centena de outros autores), dependendo da “boa vontade” do avaliador.

Em vez desta farsa de avaliação, seria melhor implementar um sistema em que a carreira docente universitária possa ser estável, com a possibilidade de obtenção de “tenure”, mas em que a progressão na carreira não possa ocorrer na faculdade em que se trabalha (implicando concurso a vagas em outras faculdades), evitando as desvantagens da excessiva co sanguinidade. Haverá sempre avaliação, se não em termos absolutos pelo menos avaliação relativa.

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