“Marlie” ouviu impávido sentença de cadeia do tamanho da sua idade

Rapaz foi condenado por ter assassinado com brutalidade amigo de 14 anos. Ter acompanhamento psicológico e psiquiátrico desde muito novo não o ilibou de responsabilidades.

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Foi neste sótão que o corpo de Filipe Diogo foi encontrado três dias depois do crime Miguel Manso

O rapaz que assassinou em Salvaterra de Magos, de forma violenta, um menor de 14 anos foi condenado nesta sexta-feira a 17 anos e meio de cadeia, uma pena praticamente do tamanho da sua idade.

De nada valeu ao seu advogado alegar que “Marlie” — nome pelo qual também era conhecido Daniel Neves — era seguido por psicólogos e psiquiatras desde tenra idade, tendo-lhe sido diagnosticada há três anos uma perturbação bipolar. O Tribunal de Santarém concluiu que naquela noite de Maio do ano passado em que estilhaçou o crânio de “Vidrinhos” com um tubo metálico, num apartamento abandonado onde se encontraram os dois, tinha perfeita consciência do que estava a fazer. “Não sofre de qualquer patologia do foro da saúde mental. Senão, não teria passado no crivo dos inúmeros técnicos que o têm acompanhado” ao longo da vida, determinaram os juízes.

A amizade recente entre os dois rapazes interessava a ambos. Órfão de pai desde os dez anos e com internamentos em instituições para jovens delinquentes no cadastro, por causa de furtos, Daniel invejava a roupa de marca e as consolas de jogos com que a família de Filipe Diogo o mimava, e que o convencia a emprestar-lhe. A “Vidrinhos”, por seu turno, atraía-o o contacto com o mundo em que o outro se movia, onde arranjar droga era coisa fácil. Na origem do crime terá estado precisamente uma dívida da vítima relacionada com compra de estupefacientes, inferior a 300 euros e já com juros de mora incluídos, que “Marlie” insistia que o amigo pagasse.

A “coragem” de “Marlie”

Filipe Diogo disse nesse dia à avó que ia à Feira de Magos mas que voltaria antes da meia-noite. Nunca mais foi visto. Depois de o agredir de tal forma que, segundo um perito ouvido em tribunal, talvez não sobrevivesse mesmo que se encontrasse num hospital, Daniel, então com 17 anos, deixou o corpo na casa abandonada e telefonou a uma amiga a queixar-se de ter sido atacado por outros rapazes. Esta seria também uma das variadas versões do sucedido que havia de contar às autoridades, fingindo que colaborava com a investigação sobre o desaparecimento. Os juízes impressionaram-se com a “coragem” que revelou ao dar falsas pistas aos familiares da vítima antes de se tornar o principal suspeito e, mais tarde, ao não mostrar qualquer tipo de compaixão para com estes. Acima de tudo, estranharam o olhar sem reacção, impávido e sereno, com que reagiu à sentença de 17 anos e meio de cadeia, acompanhada do pagamento de uma indemnização de 145 mil euros aos pais da vítima.

A condenação foi não só por homicídio como por um segundo crime, profanação de cadáver. É que dois dias depois do primeiro crime, que havia de justificar a certa altura com ter sido possuído por uma raiva intensa e incontrolável por o rapaz mais novo o ter assediado — algo que nunca ficou provado —, “Marlie” voltou ao apartamento para esconder o corpo no sótão, um local pouco limpo que não era usado pelos habitantes do prédio. Este facto contribuiu para determinar a consciência de culpabilidade do arguido, que acabou por confessar às autoridades o que tinha feito.

Traços de psicopatia

A perícia que lhe foi feita à personalidade depois do assassinato revelou a existência de traços de psicopatia, com ausência de remorsos e tendência para a auto-desculpabilização. E também uma forte atracção por sensações e estímulos externos potentes, pela necessidade de se sentir em risco, para ser aceite pelos seus pares. O colectivo de juízes olha para o percurso de Daniel Neves até hoje e vê alguém que teve “muita ajuda, muito apoio” do Estado que “nunca aproveitou”, da escolaridade que fez até aos estabelecimentos onde foi internado. “O Estado garantiu-lhe todas as condições: escolaridade, acompanhamento. E tinha família presente”, sublinhou a juíza-presidente, Raquel Rolo, qualificando a sua conduta neste caso como atroz.

O advogado do jovem não quis dizer se irá recorrer da sentença, embora tudo aponte nesse sentido, uma vez que havia defendido, antes de o julgamento começar, que “Marlie” cumprisse a pena a que viesse a ser condenado numa instituição psiquiátrica, onde pudesse usufruir do acompanhamento de que necessita, para “voltar a ter uma vida”. Já a mãe de Filipe Diogo anunciou, à porta do Tribunal de Santarém, que não se conforma: vai recorrer do acórdão e, caso os juízes que voltarem a analisar o caso não subirem a pena do assassino do filho para 20 anos, num crime cuja moldura penal pode ir até aos 25 anos, ameaça fazer greve de fome à porta do tribunal.

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