“Correram bem as aulas? Foste assediado?”

Vamos partilhar para que também eles partilhem. E quando eles o fizerem e não soubermos o que dizer, admitirmos que não temos respostas para tudo.

Abre a caixa de madeira escura com a tampa bordada a prata, no veludo interior repousam vários objectos semelhantes. Observa-os e escolhe aquele que lhe parece mais resistente. “Até logo”, diz, assim que, às escondidas, sai do quarto dos pais e foge para a porta da rua. Espera na paragem pelo 8, que a leva aos Anjos, o carro eléctrico chega, já vem cheio do Areeiro e, como acontece quase diariamente, não consegue sentar-se e faz o percurso de pé.

Tem 16 ou 17 anos, está quase a acabar o liceu. Ela concentra-se em olhar para os prédios novos, alguns ainda em construção enquanto o carro avança pela Avenida Almirante Reis abaixo, até que a cena dos últimos dias se repete. Por mais que se chegue para a frente, para cima da pessoa que está sentada no banco, ou para o lado, há um corpo que acompanha os seus movimentos, que se cola ao dela. Ela tenta esquivar-se, mas não consegue porque o eléctrico vai cheio. Ela sente-se envergonhada e furiosa até que se ouve um grito que obriga o carro a parar.

Todos olham para o homem que grita de dor e que a olha com raiva. Ela mostra o objecto que usou, um fino e comprido alfinete de chapéu com uma enorme pérola cinzenta na ponta e explica com a voz mais segura que consegue: “Este cavalheiro esfrega-se em mim todos os dias.”

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O pica do 8 ameaça chamar a polícia enquanto encaminha o homem para a rua. Ele vai de cabeça baixa e com o chapéu enfiado até às orelhas. Afinal há quem o conheça, saiba onde trabalha e que é casado, ouve-se murmurar quando ele passa. “O desavergonhado…” Mas se o conheciam a ele, também a conheciam a ela – Lisboa é uma aldeia no final da década de 1930 – e assim que chega a casa, o pai espera-a. Um amigo presenciara a cena e aconselhara-o a tirar a rapariga da escola – se queria estudar, porque não o fazia em casa, com uma preceptora? Foi difícil convencer o pai da sua decisão de querer terminar o liceu, faltavam só uns meses. “Mas, meu pai, eu sei defender-me”, argumenta. António, o rapaz que saiu de Sinde aos dez anos, sorri num misto de preocupação e de orgulho. A filha passa a fazer as viagens de eléctrico na companhia da criada.

Comecei a ouvir esta história teria pouco mais de dez anos. Era muito pequena, não percebia bem o que fazia o homem atrás da minha avó, mas gostava de ouvir histórias e de explorar os tesouros que imaginava existirem no seu quarto. Também ali havia uma caixa debruada a prata que serviria para guardar botões de punho, mas estava cheia de papéis e nem sombra de um alfinete de chapéu, para pena minha. No dia em que coisa semelhante me aconteceu, andava pelos 14 anos e viajava numa carruagem de metro cheia. Assim que senti o corpo do homem vi a minha avó no reflexo do vidro, um pouco mais velha do que eu, e acredito que senti o que ela sentira – vergonha, desconforto e asco. Também eu fugi com o meu corpo o mais que podia e, por fim, com toda a força que tinha finquei a ponta do chapéu-de-chuva no pé do homem, olhei para trás e ele tinha desaparecido.

Às vezes são cobardes, mas nem sempre, aviso agora os meus filhos – a ele e a ela. O assédio e o abuso não são pertença do sexo masculino e as vítimas não são sempre mulheres.

A minha avó falava de tudo, às vezes acusavam-na de falar de mais, de dizer coisas que não se deviam dizer à frente das crianças. As crianças são sábias, respondia. Tendo a concordar, até porque tenho o mesmo defeito. Falo de tudo com os meus filhos e os meus sobrinhos, desmistifico, brinco, por vezes de forma escatológica, escandalizo – vejo nos olhos do pai, no seu abanar de cabeça e nas exclamações deles “oh mãe…” –, mas no final, sabem sempre quando estou a falar a sério.

É fundamental falarmos de tudo com eles para que eles falem de tudo connosco. Contar a história da bisavó, da amiga a quem o professor subiria a nota em troca de um beijo, do colega que foi perseguido porque era homossexual, do escândalo de pedofilia na Igreja Católica ou no futebol britânico. De tudo, mas com naturalidade, quando surge a oportunidade para conversar sobre o assunto, não o vamos impor, nem perguntar no final do dia: “Correu bem a escola? Foste assediada por algum professor?” ou "Correu bem o treino? O treinador tocou-te em alguma parte que não devia?" Mas vamos estar atentos aos seus humores, aos seus comportamentos, aos seus silêncios.

Vamos partilhar para que também eles partilhem. E quando eles o fizerem e não soubermos o que dizer, admitirmos que não temos respostas para tudo, mas estamos disponíveis para as procurar com eles, para pedir ajuda se for caso disso. O que não pode acontecer é pensarem que estão sozinhos e que não há solução. Há sempre uma solução. 

Por agora, espero que as histórias que eles tenham para contar sejam como a daquele rapaz que a viu passar, a olhou de alto abaixo, ignorou-me ostensivamente, a mim que sou a mãe, e gritou na sua direcção: "Casava contigo!"

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