A mulher da gabardine vermelha

As marchas e o comunicado dos militares revoltosos tornaram claro que se estava a viver um dia extraordinário. Um estudante de Filosofia, do MRPP faz a sua caminhada pelas ruas até à sede da PIDE. Hoje investigador, este é o seu relato pessoal dos acontecimentos 43 anos depois.

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Foi junto ao magma subtérreo do 25 de Abril que o autor, aqui transfigurado em Ernesto, teve oportunidade de viver quando chegou a Lisboa, em Outubro de 1973, com a finalidade de estudar Filosofia e a presunção de que liberdade e pensamento se inventam entre si. A universidade era, então, um campo de batalha, com algumas faculdades, incluindo a sua, ocupadas por trupes de vigiadores e os estudantes divididos por organizações rivais, uma pró-soviética, duas trotskistas e três maoístas.

O testemunho que se segue recorda a especificidade do gesto emancipador na singularidade dos acontecimentos de um dia contingente, sentido e voluntarioso. Como a liberdade é alento diário, pretende-se observar que só os trilhos incertos da sensibilidade crítica, do inconformismo e da coragem possibilitam lograr o mais precioso dos bens. 

Os episódios descritos são factuais, incluindo o da manifestação que se dirigiu à PIDE.  

Em memória de João Guilherme Arruda

“Esta composição não tem paragem na estação de S. Sebastião da Pedreira.” Ernesto sorriu ao recordar a explosão no quartel-mestre fazia um ano e desviou o olhar para Marta, ainda ausente, que não o retribuiu.

O segundo sinal veio do Henrique Braga. À saída do metro em Sete Rios, insistia que havia um golpe de Estado e que a ida até à Sorefame já não se justificava. O relance sobre uma figura imóvel de impermeável comprido fê-lo calar-se e aproveitar a boleia.

Só as marchas militares, primeiro, e a leitura do comunicado dos militares revoltosos, depois, tornaram claro, no rádio do táxi, ligado para tirar dúvidas, que se estava a viver um dia de calendário. Na rua oblíqua à fábrica, a incomodidade transparecia. As bicas, os galões e os bolos secos, à porta de vão de comes e bebes, não suavizavam o incómodo da agitação falhada nem as interrogações silenciadas.

Estavam os do costume, a Teresa Serra, o Rochinha, o Godinho, a Marília, o António Cardoso, o Carlos Matos, o Pita, a Aurora, o Alexandrino e a Dulce, de Direito, a Stella, o Ernesto, a Marta e a Manuela, de Letras, a Violante Saramago, de Ciências, o Quininha, de Medicina, e algumas caras novas, provavelmente de Económicas e dos liceus. Conheciam-se da vida associativa e, em muitos casos, também pelo nome de guerra. Alguns falavam com todos, mas a maioria cingia-se aos do seu compartimento académico.

Na véspera, em reunião no ISCTE, ao Campo Grande, definira-se o núcleo destinado a garantir a continuação do boicote ao aumento do preço das refeições na Cantina Universitária. Os restantes foram convocados, um a um, para os portões da fábrica dos comboios, na Venda Nova, ao meio-dia, hora da mudança de turno e do despegar operário para o almoço.

Um terceiro grupo estava implícito. Quem dirigira a reunião e passava instruções podia não comparecer. A ousadia e a dedicação serviam de resguardo a qualquer suspeita. O Saldanha Sanches e a Mizé Morgado, embora presos, personificavam a condição dos revolucionários que urdiam a rede, redigiam a propaganda e comandavam a acção.

“1.º de Maio é Vermelho, Todos ao Rossio, 17 horas” tornara-se, desde Fevereiro, a consigna de uma campanha tensa e frenética destinada a fazer prevalecer o MRPP na comemoração clandestina do Dia do Trabalhador.   

O breu com que a polícia cobria as convocatórias grafitadas nas fachadas e nas empenas acusava a acumulação de cicatrizes noctívagas numa cidade que recolhia pacata e alvorecia estremunhada. Algumas esquadras tinham recebido motorizadas e até os soturnos guardas nocturnos haviam passado a disparar sobre os camaradas. Esvaziados do alento épico pela deambulação operária, os estudantes desocupados não podiam imaginar a salva de honra que a escolha daquela manhã de molinha para a acção militar lhes prestava, pois pretendia impedir que a comemoração que conclamavam viesse a conhecer a cor proibida. Não tanto por receio do drapeau das jornadas de 1848, mas pelo sangue vislumbrado no afrontamento policial aprazado. Otelo di-lo-á em memórias. Soares irá esclarecê-lo no dias seguintes, a instância do Presidente da República interino, em incipiente estreia prosódica na RTP: “1.º de Maio vermelho? Por que não? Vermelho das papoilas do nosso Alentejo, vermelho como os cravos que o povo português distribuiu aos soldados das forças armadas. Mas não vermelho como o sangue português.”        

Que fazer? Para a maioria, a resposta era óbvia: regressar e aguardar orientações. Com Direito ocupado pelos gorilas, a sala da associação de estudantes de Medicina emparedada e o Técnico sujeito a controlo afunilado de entradas, restava o Cineclube Universitário de Lisboa, à Almirante Reis, como destino.

Ernesto separou-se, então, de Marta. O apelo dos acontecimentos sobrepunha-se-lhe à espera de notícias incertas, quando podia testemunhar os factos, mesmo neles participar. As horas avançavam pelas ruas, praças e largos. Nada mais parecia seguro. Retomou à cidade com o António Domingues, compenetrado e circunspecto, qualidades raras entre os restantes camaradas, de sangue ardente, mas dado a meias conversas. Durante o almoço, em taberna aclarada pela porta larga de correr que dava para a Rua de S. Bento, o Pinta, como era conhecido, fez o relato vivido de quem acordara com a madrugada e assistira, com o Jacinto, por vezes encobertos na língua de saibro que ladeia o Cais das Colunas, aos movimentos militares.

Pagos os 18 escudos do bife, imperial, pão e bica, António encaminhou-se para Económicas, donde seguiria para a residência universitária, e Ernesto pôs-se a caminho da ordem do dia. A acalmia geral que parecia isentar a cidade do odor da pólvora e difundir a bonança dos feriados que aguardam a hora dos sinos transfigurou-se à vista dos guardas republicanos prostrados ao Calhariz. Com capacetes de combate, metralhadoras pesadas e viaturas a ocupar a rua, o destacamento sumário era objecto de curiosidade geral. Defendia o quartel instalado no Convento dos Paulistas que vigiava o espectro da extinta sede anarco-sindicalista? Ou agrupava forças destinadas a tomarem posições? Os populares que cirandavam entre as linhas opostas, distantes entre si algumas dezenas de metros, perguntavam-no com a graça que os verdadeiros e os falsos ingénuos compartilham.

O espectáculo ia longe, era substantivo e estava, ali, consumado. A mudança não era fácil de percepcionar mas expunha-se na falta de jeito dos corpos de meia-idade deitados sobre a calçada, cuja voz de comando se revelava incapaz de impedir a divagação civil pelos passeios. Eram as gelhas nas máscaras de guerra de quem sempre obedecera e se fizera obedecer que perdiam os homens. Os rostos expunham-nas, não por terem alienado a rudez de quem dispunha da força, mas por deixarem exalar uma mofina que se julgava expurgada pela farda.    

Vencido o cotovelo de rua que apartava os débeis contendores, sobressaía a inocência manceba dos infantes alinhados em bancos corridos de camiões militares, sublimada pelo desconcerto de quem repentinamente se descobre importante. Embora os mais afoitos dessem sinais de alegria, a maioria limitava-se a juntar a satisfação acanhada ao aprumo militar.

Às duas igrejas e sob a imagem romântica e republicana de Camões, os soldados eram incentivados por populares que desejavam que ninguém estivesse equivocado e todos alinhassem pela liberdade e pela paz. Face aos desígnios turvos dos revoltosos interpelados, a manobra política possível era envolver os militares e dar-lhes conta do que se ambicionava.    

Um pequeno grupo distinguia-se por ter passado à acção, ao transportar uma bandeira nacional de grandes dimensões e distribuir alimentos, água e motejos jocosos às tropas. Ernesto conhecia de vista o jovem adulto que capitaneava em gestos largos a operação civil que percorreu cada uma das Berliets, mas não lhe associava nem nome nem condição política. Tratava-se de João Soares, como João Isidro, seu amigo e colega de curso em Direito, esclareceu um pouco adiante. Embora jornalista no Expresso e dado à conversa sobre a penumbra das conspirações, o Isidro nada sabia acrescentar aos movimentos militares já conhecidos. Limitou-se a recapitular o cepticismo comum quanto ao sucesso das conjurações armadas, da Mealhada a Beja, passando pela Sé, enquanto encavalitava os óculos que lhe tropeçavam no nariz ao ritmo das peripécias que desfiava.

As forças de cavalaria, da guarda republicana e da própria polícia de choque que a Situação havia feito convergir para o Chiado com o objectivo de chegarem ao Largo do Carmo só se viam ao longe, recuadas para posições que antecipavam a retirada.

No Rossio, Ernesto encontrou a festa. Uma coluna militar estacionara no quarteirão do Café Nicola, o senhor Folquim apregoava e despachava vespertinos, os primeiros cravos circulavam entre paisanos, soldados e marinheiros. A praça estava empolgada por magotes de populares desejosos de presenciar.

António, trotskista moreno de Medicina, e outros conhecidos dos meetings associativos, após concitarem os presentes contra os monopolistas que arrebanhavam a riqueza comum, verdadeiros beneficiários do regime e seu suporte principal, dirigiram-se à dependência do Banco Português do Atlântico, no edifício do Hotel Mundial, a que partiram a montra.

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A vaga miúda, de cabelos longos, casacos curtos, camisolas justas e calças à boca de sino, comprimia-se no Largo do Carmo a ponto de o exército ter disposto cordões de soldados para que a rua que o contornava permanecesse livre

Era um hábito do último ano, em que os plenários da academia, realizados no átrio do primeiro andar do Hospital de Santa Maria, para evitar a carga policial, antecipavam manifestações-relâmpago, um pouco por toda a cidade, em que cada facção política estudantil atestava a sua combatividade com a distribuição de propaganda, a pintura de paredes e de autocarros, a destruição de vitrines de bancos.

O resultado foi decepcionante. A tentativa de apontar o inimigo último foi recebida com total indiferença, quase com a curiosidade dedicada a um vulgar incidente fortuito. A comissão de campo ad hoc sentiu-o, mas não desistiu. Avançou em manifestação até ao cimo da Rua da Palma, onde demoliu a vidraça de um supermercado de cadeia publicitada e franqueou a restituição ao povo dos bens que este produzira. Mais explícita, a iniciativa conheceu algum sucesso. Embora a medo, houve quem fizesse um ou mais avios de mercearia, enquanto muitos outros aproveitaram para refrescar as goelas com cervejas que corriam de mão em mão.

Ernesto agradeceu a garrafa que lhe passaram, que abriu com recurso aos ferros do chafariz fronteiro, junto ao qual, havia meio século, a morte encontrara Machado dos Santos. Acabou, porém, por não a saborear até ao fim. Ao ver-se interpelado por Aurora Rodrigues, que descia a Almirante Reis e tomava aquele arraial por assunto de marginais da política e da sociedade, abandonou a garrafa na amurada da fonte.

Aproveitou a companhia para regressar à Baixa e informar-se sobre o que acontecera no Cineclube Universitário. Aparentemente, os camaradas tinham-se cansado de esperar e decidido partir segundo as suas afinidades. O que o interessava verdadeiramente era saber onde parava a Marta. A ideia de uma relação clandestina no seio de uma organização ilegal agradava-lhe. Obrigava-o, porém, à discrição, a saber de todos para esclarecer o que só a ela respeitava.

Ernesto e Marta tinham dormido ali perto, na Pensão Beira Baixa, aos Anjos, depois de dois recepcionistas terem recusado dar quarto a um rapaz de 20 anos e a uma rapariga com 26, que lhes tocaram à campainha pelas três da madrugada. A noite, propriamente dita, tinham-na passado em casa do Osório, um psiquiatra amigo do Filipe Rosas, que Marta procurara para expor os sarilhos mentais do seu companheiro e camarada comum. Os dias cerceados, a guerra e o arroubo temperamental haviam trazido a neurose à decifração quotidiana, sustentada em abundante literatura acessível, ampliada, aliás, pelas tramas psicóticas de filmes exibidos nos recentes cinemas-estúdio.

Vida e trauma caminhavam a par: a situação era brutal para quem se via transportado para a obsessão de uma guerra obsidiada, mas sentida, igualmente, como mutilação insanável por aqueles que se descobriam em lugar infecto.

Chegados ao Rossio, o caminho da Aurora divergiu, sem perguntas ou explicações. A praça permanecia liberal, as tropas e os populares haviam redobrado, embora, agora, os grupos que circulavam rivalizassem com aqueles que se limitavam a namorar os acontecimentos. O fluxo principal dirigia-se para a porta dos Armazéns do Chiado. Um velho Panhard manobrava as suas 12 toneladas ao som férreo de antigas artrites, pois os avanços e os recuos transversais destinados a dobrar a rua eram acompanhados pelo ranger agudo da fricção mecânica. O reumatismo do velho paquiderme militar não toldava, porém, o empenho da tripulação, com as cabeças estiradas nas escotilhas, e muito menos a agilidade dos transeuntes apostados em tirar medidas aos gavetos.

Quando estes últimos se aperceberam de que guardas republicanos com equipamento de combate tomavam posições no passadiço do Elevador de S. Justa, o proboscídeo foi levado a estancar e a alçar o seu rouco e eminente canhão para o alvo inesperado. O gáudio transbordou. Às palmas sucederam os apelos ao tiro e o gozo mental do seu efeito cénico. Porém, para escárnio geral, o inimigo recolheu tão inopinadamente quanto havia surgido. O que não se sabia, pois constituía segredo maior, era que as tripulações madrugadoras não dispunham de munições de artilharia. Tinham ficado em Santarém, guardadas em paiol após o 16 de Março. 

A desobediência e a coragem foram, pois, as armas da jornada. Na Rua do Arsenal, a recusa do alferes Sottomayor em disparar sobre Salgueiro Maia derrotara a cavalaria do regime; face ao Terreiro do Paço, a resistência dos oficiais da fragata Gago Coutinho em alvejar os tanques revoltosos, a mando do disciplinado e ignorado Seixas Louçã, permitira conservar uma posição determinante; nas ruas, a presença da população, à revelia dos apelos radiofónicos, atalhava as vicissitudes militares e assegurava a vitória.

Enquanto a besta de guerra tomava posição na Calçada do Sacramento, a vaga miúda, de cabelos longos, casacos curtos, camisolas justas e calças à boca de sino, comprimia-se no Largo do Carmo a ponto de o exército ter disposto cordões de soldados para que a rua que o contornava permanecesse livre. Ninguém queria perder a rendição de Marcelo, verdadeira deposição de Salazar. Para alguns, a jornada ficaria assim cumprida, mas para outros só então se iniciaria. Ernesto sentiu a ambiguidade e o perigo do momento, ao fazer um gesto brusco no sentido do automóvel que transportava Spínola. Os soldados próximos, ao aperceberem-se, fuzilaram-no com os olhos como se tivessem filado um intruso tresmalhado do estado de coisas que supostamente ali prescrevia.

Embora sabedor de que o currículo do cavaleiro do monóculo e do pingalim o levara à frente alemã nos Urais e aos pelotões falangistas, convinha reservar o desagrado. A leitura do livro em que o general vitoriado vislumbrava o futuro da pátria deixara-lhe a sensação de prosápia descabida, apesar de lhe reconhecer o mérito de cindir a ortodoxia oficial ao negar a solução militar para a guerra. Que significava a entrega do bastão civil a esta personagem teatral?  

Coube, por fim, a Francisco de Sousa Tavares anunciar que a população deixara de ter, ali, o seu lugar. Era necessário retirar os dignitários destituídos e começar a negociar o poder. O apelo à convergência para o Terreiro do Paço como destino apoteótico do gesto de libertação não deixou de surtir o efeito imediato pretendido. Passou, mesmo, a circular em pendão improvisado que se sobrepunha à turba. O ambiente distendeu-se e os concidadãos que tinham passado as horas da expectação comprimidos e de pé dispersaram.

Foram poucos os que se dirigiram à praça da governação, embora muitos daqueles que vagabundeavam pela Baixa tivessem contribuído para formar um magote de duas ou três centenas de populares que vinham no rasto do que constava ter sido alvitrado. Os companheiros de Ernesto formavam um pequeno núcleo em frente ao Ministério da Agricultura, cerca do local em que Manuel Buíça se postara, havia dois quartéis e meio, àquela mesma hora. Como as dúvidas quanto aos autores e às finalidades do golpe de Estado subsistiam, a pergunta que encerrara a manhã ameaçava paralisar igualmente a tarde. Porém, a oportunidade estava, agora, à vista.

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ilustração de miguel feraso cabral

A praça compunha-se, um estudante deitara a mão ao megafone de um marinheiro, que iria ser necessário enxotar, e outros três estavam munidos dos cobiçados sprays Dupont, espoliados da montra da Rua Nova do Almada. Marta e Ernesto participaram na decisão de converter a manobra de diversão do Carmo na manifestação do dia, subordinada às palavras de ordem do movimento. A Ana Gomes despiu a gabardine, transfigurada, depois de dobrada em rectângulo, na indispensável bandeira vermelha, segura, agora, como noutras ocasiões anteriores com míngua de varapau, por quatro mãos firmes. Foi então que uma voz se ergueu do grupo, em que predominavam os camaradas mais velhos de Direito, e soltou o grito: “guerra do povo à guerra colonial”. Face às circunstâncias, a expressão, mimética da estratégia leninista de Outubro, era manifestamente rebuscada, mas não restava alternativa, pois as consignas eram as assinaturas que permitiam distinguir as organizações políticas.

A cadência das palavras de ordem teve o mérito de conclamar a praça, que se adensou junto dos estudantes e, aqui e ali, ecoou em coros que reclamavam o fim da guerra. Se a concentração correu bem, o arranque da manifestação caminhou de desastre em desastre até ao acaso feliz. Primeiro, os estudantes partiram no passo rápido que conheciam das acções de agitação de rua, o que os colocou a 20 ou 30 metros de um corpo ainda imobilizado. Mais tarde, com a coluna formada e em marcha, amparada por um serviço de ordem improvisado, o desfile confrontou-se, ao assomar no arco da Rua Augusta, com a visão de uma banda militar que se aproximava, o que obrigou a brusca regressão. Foram, porém, estes movimentos em falso que agregaram o cortejo. Descartada a intenção de avançar pela Baixa, passar pelo Rossio e reunir nos Restauradores, que Sousa Tavares havia, aliás, evocado, restava o caminho mais afastado de chegar ao Cais do Sodré, subir ao Chiado e descer a Rua do Carmo. A vontade de expressão colectiva dos sentimentos silenciados a tudo se sobrepôs. Quando em marcha, o cordão humano tendia a quebrar. O terço dianteiro descolava dos dois restantes, menos dados ao vigor da passada e da conclamação, o que tornou a paragem e o reagrupamento inevitabilidades regulares.

Estas demoras, compensadas por vozearia redobrada, correram, até meio da Rua do Alecrim, bem melhor do que se poderia imaginar. Porém, à vista da sede da polícia política, do outro lado do descampado que ladeava o desnível entre as ruas, o grito “todos à PIDE!” impôs-se, vindo do meio da manifestação.

Ernesto gelou, alguns dos que ali estavam iam morrer. A cabeça da manifestação também tinha compreendido o perigo iminente. Fê-la parar junto ao Largo do Barão Quintela e tentou domá-la com as palavras de ordem mais ouvidas. Sem sucesso. Dezenas de populares de diferentes idades e condições partiram em corrida para a Antónia Maria Cardoso.

Além dos gritos “morte à PIDE!” e “assassinos! assassinos!”, bem ritmados, ouvia-se o tropel do som cavo das pancadas violentas nas portas aferrolhadas. Havia quem tomasse balanço a partir do muro dianteiro e projectasse ombros e pés. Só a raiva e o sentimento de justiça desmesurados, ao mesmo tempo irracionais e sumamente racionais, no desejo absoluto de reposição do orgulho da integridade colectiva vilipendiada, permitiam escutar tão sublime desassombro. Duas rajadas de metralhadora ligeira fizeram-se, então, ouvir. A PIDE terminou ali, igual a si própria. Spínola ainda falará em mantê-la “sem dar lugar a reparos”, mas a alma, ou melhor, a desalma própria voltava a estar exposta nos quatro mortos e nas dezenas de feridos prostrados, e socorridos, na rua.

O Largo do Chiado passou a retaguarda, chegaram as ambulâncias, algumas da polícia, por estranha rotina, e encaminharam-se os feridos, entre os quais aquele que fora o companheiro de Marta, atingido de raspão. Ernesto interpelou-o acerca do transporte para o hospital, mas não recebeu resposta. Estava na lista dos suspeitos das noites transviadas, mas sem lugar de destaque. Só na manhã do dia seguinte, Marta, que regressara ao trabalho na Faculdade de Letras, soube que um aluno de Filosofia se encontrava entre os mortos da véspera, o que a levou ao Hospital de S. José. João Guilherme Arruda, chegado de Ponta Delgada no final do ano anterior, era o seu nome. Ernesto, a frequentar o segundo ano, recordar-se-á de um jovem, acompanhado por duas raparigas, que o tinha interpelado no final da Rua do Ouro acerca do movimento no sentido da Praça do Comércio. Atribuiu-lhe o rosto. Confirmada a notícia, feita a conversa que a ocasião reclamava e reunida a informação relevante, Marta vislumbrou o Ferreira, certamente em missão afim, mas do lado oposto. Dobrado e esquadrinhador, com olhar de baixo para cima, o Ferreira, dispensado de usar a farda do pessoal menor, que dirigia em Letras, no qual se incluía a sua mulher, que tinha o negócio das sebentas, distinguia-se por grunhir e exalar canalhice.

Encontrados dois militares e denunciada a presença do bufo, a descrição da figura e da sua história mostrou-se tão persuasiva que os soldados prontamente disparam para o ar com a intenção de chamar reforços. Soube-se, de seguida, que o homúnculo, que deu definitivamente às asas, viera consolar correligionários apanhados por populares que aproveitaram para acertar róis de contas antigas. A caçada ao pide iniciara-se na véspera, mesmo antes dos crimes da António Maria Cardoso, logo que a queda do Governo se tinha tornado clara, mas intensificou-se à medida que as notícias correram.

Ainda no Chiado, os estudantes identificaram um inspector que participara na prisão de alguns colegas, obrigaram-no a identificar-se e conduziram-no a uma brigada militar que se limitou a protegê-lo e a libertá-lo logo que lhe foi possível. O jogo de equívocos era, porém, questão menor. O que relevava era que o início da noite virara o fim da manhã pelo avesso. Agora, a polícia escondia-se e os estudantes e os populares tinham tomado a iniciativa cívica em campo aberto. 

Quando Marta e Ernesto desceram ao Rossio, pelas nove horas da noite, as opiniões desencontravam-se. Algumas mulheres pretendiam substituir o nome da ponte sobre o Tejo, outros presentes advogavam o apeamento de Carmona no Campo Grande e um terceiro grupo inclinava-se para uma urgente concentração nocturna junto à cadeia de Caxias.

A consumação destes desejos não iria aguardar dois dias.

Marta partiu para o Hospital da Marinha, com a intenção de seguir para casa, pois, desta vez, não podia perder o último comboio.

Ernesto deixou-se ficar, até se aperceber de que o novo poder se apresentava na televisão. Entrou no Café Gelo e viu, mais do que ouviu, a Junta de Salvação Nacional. Sorriu, eram passarões serôdios empoleirados em fio de telégrafo. Com esta gente, a desobediência ficaria na rua.

O 1.º de Maio seria vermelho.

Luís Andrade é professor e investigador da FCSH-UNL

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