A angústia do jornalista “preso” às notícias com o fogo à porta de casa

O choro do filho deu coragem a Mário para “combater o monstro”. Relato na primeira pessoa de um dos muitos madeirenses que na madrugada de quarta-feira travou uma batalha solitária contra as chamas para salvar a casa.

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JOANA SOUSA/AFP

"O jornalista não é notícia." A máxima foi dita várias vezes no directo em que o repórter Mário Gouveia fazia o ponto da situação dos incêndios da Madeira para a TVI pouco depois das 19 horas de terça-feira. A sua cara mostrava mais que o cansaço de quem estava há quase 24 horas em serviço e com poucas horas de sono. A cara do jornalista mostrava uma grande tensão. "O jornalista não é notícia", repetia. Mas a sua angústia era tanta que não resistiu a partilhar com quem o via em directo a dor que também ele sentia. Preso pelo directo da televisão e pelo caos que por essa hora era vivido no Funchal, o jornalista acabou por relatar que temia pela sua casa no meio da encosta, pela sua mulher e filho. O fogo já espreitava a zona da Choupana, a meio da encosta junto ao Funchal onde mora, e ele, impotente, preso no centro do Funchal, sem nada poder fazer para ajudar a família e tentar salvar os seus bens.

"Sentia uma dor tão grande no peito que quase me esmagava", contou ao PÚBLICO já na tarde desta quarta-feira. Uma dor que só era aliviada quando, nos curtos intervalos dos directos, entrava em contacto com a mulher e ela lhe dava conta que o fogo ainda não havia chegado à sua zona. Ainda assim, diz que travava "uma batalha terrível". A família chamava-o para casa e as notícias e os directos constantes amarravam-no ao centro do Funchal. Mas o pior ainda estava para vir.

Mário Gouveia chegou a casa já perto das 22h. Demorou 1h30 para fazer um percurso que habitualmente não lhe rouba mais de 15 minutos. As chamas "eram fortes e altas" mas pareciam não se dirigir para sua casa e dos vizinhos. Com uma pequena mangueira regou o telhado e os arredores da sua casa. Pela meia-noite, ele o repórter de imagem Renato Abreu voltaram ao Centro do Funchal "para fazer as últimas notícias". "Fui e vim com um nó na garganta. Com o coração apertadinho", conta. Voltou a casa cerca de duas horas depois. Ainda ficou até às quatro horas da madrugada de quarta-feira "a ver as andanças do fogo". O corpo pedia cama e, como o perigo parecia não vir para perto, acabou por se ir deitar. "Caí que nem uma pedra", relata. Meia-hora depois era acordado por um telefonema da sua irmã que mora na casa ao lado. O vento tinha mudado e as casas estavam agora cercadas de faúlhas. "Parecia que as estrelas tinham caído todas do céu para cima das nossas casas."

As chamas eram grandes e fortes, "com 15 ou 20 metros de altura" e vinham na sua direcção. "Voltei a pegar na mangueira. Era uma mijinha contra um fogo gigante. Só me restava partir. Deixar para trás toda uma vida de trabalho, mas salvar a família."

Colocou a mulher, o filho Francisco de 18 anos e as duas cadelas no carro e começou a descer a encosta. Para trás ficava tudo o que tinha. "Só queria salvar a milha família. Salvar quem mais amo. Aquilo era um inferno."

O filho chorava e a mulher não escondia a sua dor. Parou o carro. "Fiquem aqui. Eu vou salvar o que é nosso. Se houver perigo volto." Havia perigo. As chamas "eram agora gigantes".

Vestiu uma camisola ensopada em água, trocou as chinelas por uns sapatos e fez-se às chamas com a sua insignificante mangueira. O mesmo fazia o seu cunhado e alguns vizinhos. Uniram-se contra o monstro.

"Encarei o bicho com medo, mas as lágrimas do meu filho davam-me força. Eu é que te vou devorar fogo maldito", gritou no meio da noite.

A batalha parecia, porém, perdida. O lume ganhava terreno e Mário estava prestes a dar a batalha por fracassada e regressar para junto família. "O fogo estava, gigante, a menos de cinco metros de mim. Não sei o que aconteceu a seguir. Lentamente o vento começou a mudar de rumo e a afastar-se das casas", disse ao PÚBLICO. "Não sei o que foi, se foi divino ou não, mas algo me ajudou. Algo me ajudou a salvar o que é meu", contou emocionado.

Mário Gouveia, 52 anos, jornalista há 26 anos e correspondente da TVI desde 1996, já reportou muitas tragédias na Madeira, mas esta esteve mais perto de si e dos seus. "Sempre relatei tudo com muita emoção, porque amo o meu povo e a minha terra e sinto muito a dor dos outros. Agora tenho a certeza que a minha emoção vai ser maior, mas o trabalho tem de ser feito."

Depois do susto Mário Gouveia voltou ao trabalho e aos directos. Desejando dar apenas notícias e não ser ele o protagonista. "O coração vai estar sempre mais apertadinho, mas nessas alturas vou-me lembrar sempre das lágrimas do meu filho que me deram coragem para enfrentar o monstro."

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