Viena, "a melhor cidade do mundo", é governada por um dinossauro

Em Portugal, os "dinossauros autárquicos" foram condenados por lei à extinção. Mas Viena, campeã dos índices de qualidade de vida, é governada há mais de duas décadas pelo mesmo homem.

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Mariahilferstrasse em Viena Adriano Miranda
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Viena Adriano Miranda
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Viena Adriano Miranda

Há oito anos consecutivos que Viena é considerada a melhor cidade do mundo para se viver no índice da consultora Mercer (Lisboa está em 43.º lugar). Em outros rankings de qualidade de vida, a capital da Áustria aparece sempre também entre os primeiros lugares.

Viena é mesmo a melhor cidade do mundo? Depende. O clima é pouco brando, a língua é difícil, cada um tem a sua opinião. Os próprios vienenses gostam de se queixar – das obras, do trânsito, da escassez de apartamentos para arrendar.

Mas Viena é sem dúvida uma cidade excepcionalmente limpa, tranquila e bem organizada. É difícil avaliar quanto do mérito cabe ao actual burgomestre e presidente da região de Viena, Michael Häupl, que ocupa estes cargos desde 1994. Certo é que, em Portugal, Häupl já não estaria no poder.

Em 2005, o Parlamento português aprovou uma lei que limita os presidentes de câmara a três mandatos consecutivos; o objetivo da lei era evitar os “dinossauros autárquicos” que se eternizavam à cabeça de vários concelhos.

Não existe em Viena uma lei semelhante. O dinossauro poderia durar para sempre – só se extinguiria se e quando os vienenses deixassem de votar nele.

Viena é toda grande

A Áustria tem um território e uma população ligeiramente inferiores aos de Portugal, mas o seu sistema político é federal. O país está dividido em nove Länder, divisões administrativas com parlamentos próprios e poderes semelhantes aos das regiões autónomas da Madeira ou dos Açores. Viena é um dos nove Länder.

A cidade/região de Viena tem actualmente 1,8 milhões de habitantes (o concelho de Lisboa tem cerca de 500 mil; o Porto, 215 mil). A cidade está dividida em 23 Bezirke (freguesias), mas tem um único burgomestre. Ao contrário de Lisboa e Porto, cuja região supramunicipal está institucionalizada em áreas metropolitanas, não há uma “grande Viena”.

Há zonas mais ou menos centrais, mais ou menos prósperas, mas quando se pergunta a um nativo onde ficam as zonas “complicadas”, os “guetos”, fica-se sem resposta. Não há aqui “cidades-dormitório” nem “bidonvilles”.

Também ao contrário de Portugal, as eleições autárquicas não são ao mesmo tempo em todo o país, nem seguem necessariamente as mesmas regras. Cada Land marca as suas eleições regionais e locais de acordo com o seu próprio calendário.

A leitura política dos resultados é, por isso, também diferente da que se faz em Portugal. Como as eleições têm lugar em alturas diferentes, não se contabilizam resultados agregados a nível nacional.

Ainda assim, as eleições regionais e locais têm influência sobre a política a nível federal na Áustria. E os temas políticos federais imiscuem-se também nas campanhas locais: nas eleições de 2015, por exemplo, a imigração e a crise dos refugiados foram temas de campanha em Viena.

Viena é outra coisa

Muito do que se fala nas campanhas em Viena não seria novidade para eleitores portugueses: o estado das finanças locais, a possibilidade de construção de uma terceira pista para o aeroporto (uma questão na qual a cidade tem poderes limitados: o aeroporto de Viena fica a 25 quilómetros do centro, situa-se já no estado da Baixa Áustria).

Há contudo questões em que Viena é bastante diferente das cidades portuguesas – ou até do resto da Áustria. A expressão “Wien ist anders” (“Viena é outra coisa”) é muito repetida pelos austríacos para vincar as diferenças entre a sua capital e o resto do país – para o melhor e para o pior.

De acordo com a Câmara de Viena, 51% do território da cidade está ocupado por parques ou outras áreas verdes – o equivalente a 200 quilómetros quadrados (o concelho de Lisboa inteiro tem 100km2). No estudo Europa Urbana do Eurostat, 56% dos vienenses diziam-se “muito satisfeitos” com os espaços verdes da cidade (em Lisboa, só 11% diziam o mesmo).

No mesmo estudo, 72% dos vienense mostravam-se igualmente “muito satisfeitos” com a rede de transportes públicos (Lisboa: 9%). Mais de 80% dos habitantes da cidade vão para o trabalho ou para a escola de transportes públicos, de bicicleta ou a pé.

Ainda assim, as questões relacionadas com trânsito e mobilidade geram muita controvérsia. Em 2014, houve enorme polémica à volta de uma proposta de fechar ao trânsito a Mariahilferstrasse, uma rua com grande tradição comercial, um pouco como as ruas do Carmo, em Lisboa, ou de Santa Catarina, no Porto. Realizou-se um referendo nos dois bairros atravessados pela rua; a proposta acabou por ser aprovada por uma margem muito curta.

Os referendos locais são um instrumento utilizado há décadas em Viena. Nos últimos 25 anos, várias decisões significativas foram tomadas por referendo.

Foi perguntado aos vienenses em referendo se devia prolongar-se os horários de funcionamento das escolas públicas para lá do meio-dia (a maioria votou sim); se aprovavam a realização de uma exposição mundial em 1995 (a maioria votou não); se devia ser construída uma nova central hidroeléctrica no Danúbio (sim); se Viena devia apresentar uma candidatura aos Jogos Olímpicos de 2028 (não); se o metro devia poder circular de madrugada nos fins-de-semana (sim).

Viena vermelha

O dinossauro Häupl foi reeleito por cinco vezes – embora sempre com menos votos desde 2005; desde 2010, perdeu a maioria absoluta e governa em coligação com os Verdes. Curiosamente, não foi pela via eleitoral que chegou ao poder. Assumiu o cargo de burgomestre sem ir a votos, sucedendo a Helmut Zilk (que no ano anterior ficara gravemente ferido num atentado perpetrado por um terrorista anti-imigração). Ambos eram membros do SPÖ (socialistas), o partido que governa Viena desde 1920 - com um intervalo entre 1934 e 1945, anos de ditadura fascista e anexação pelo regime nazi.

Häupl defende que este monopólio do SPÖ é positivo para a cidade: “Noventa anos de Viena vermelha não bastam”, disse num comício em 2010. O vermelho é uma alusão à cor do partido. Mais ainda que em Portugal, os partidos na Áustria são conhecidos pelas suas cores. O partido socialista é o vermelho, o conservador o preto, a extrema-direita é azul, os verdes são, bem, verdes.

A imagem de Häupl, normalmente retratado com um sorriso bonacheirão, é ubíqua em Viena. Tanto em tempo de campanha eleitoral ou fora dela, é comum ver o burgomestre em cartazes a prometer mais habitação social, mais lugares em infantários ou mais investimento em projectos de alta tecnologia. No entanto, perante o desgaste político de mais de duas décadas, Häupl admitiu este ano que, pelo menos para ele, já chega.

“Nada é para sempre”, disse à revista Profil. Deixará o cargo tal como acedeu a ele: sem ir às urnas. Eleito para um novo mandato de cinco anos em 2015, vai abandonar a Rathaus (o majestoso palácio que alberga a sede do governo vienense) no final de Janeiro de 2018. O seu sucessor será escolhido pelo SPÖ, e deverá cumprir o resto do mandato.

Apesar de todos os títulos de “melhor do mundo” conquistados por Viena, o próprio Häupl admite que os seus conterrâneos raramente estão satisfeitos com a cidade, mas diz que isso é por uma questão de temperamento. “Faça-se o que se fizer, os vienenses nunca estão contentes!”, disse numa entrevista à revista Vienna Review. “É o modo de ser deles.”

 

Pedro Ribeiro nasceu no Porto, estudou em Coimbra e trabalhou em várias cidades como jornalista durante 16 anos. Vive em Viena desde 2013.

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