O Homem que nunca foi “tocado pela graça da fé”

Este é para mim o principal legado de Mário Soares: a defesa intransigente da liberdade como intrínseca à condição humana.

Conheci Mário Soares pela primeira vez em 1970 na Sorbonne, em Paris. A cena ficou registada na minha memória como tendo acontecido em Maio de 1968, mas nessa época Soares estava em São Tomé e só seria exilado para França em 1970.

Seja como for, na Sorbonne o ambiente efervescente de Maio ainda perdurava e, naquele dia de 1970, o anfiteatro da universidade esta repleto de jovens preparados não para ouvir Mário Soares mas para o contestar. Com efeito, para todos nós que tínhamos “feito Maio de 68” e para quem a palavra de ordem central era “O que nós queremos? Tudo!”, a voz de Soares era de um execrável reformismo… O resultado foi assim uma vaia monumental que praticamente o impediu de se fazer ouvir. Eu, pelo menos, não me lembro nada do que ele disse. Mas lembro-me de uma coisa que nunca esqueci: a coragem do homem que invectivado, apelidado de tudo e mais alguma coisa, impedido de dizer o que quer que seja, não abandonou a sala, não virou as costas. Manteve-se ali de pé enfrentando os gritos e os apupos… Talvez eu na altura não me tivesse apercebido disso, mas a memória mais forte que guardo desse episódio é a atitude corajosa de Mário Soares que, aliás, o acompanharia pela vida fora.

O seu outro lado que tive a ocasião de constatar várias vezes era a intuição política que o levava a tomar, de forma espontânea, iniciativas totalmente inesperadas: foi ela que o levou em 1989, em visita à antiga judiaria de Castelo de Vide, acompanhado pelo então presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, Joshua Ruah, a pedir perdão em nome de Portugal pelas perseguições da Inquisição aos judeus. O exemplo foi seguido pelo Rei de Espanha em 1992, no quadro das comemorações dos 500 anos da expulsão dos judeus de Espanha, e foi esta última iniciativa que se tornou conhecida internacionalmente, mas foi Soares o pioneiro.

Foi também ele o primeiro Presidente da Republica a visitar a Sinagoga de Lisboa, em Junho de 1993, 89 anos depois da sua inauguração em 1904. A visita inédita realizou-se no quadro da homenagem a Aristides de Sousa Mendes realizada na sinagoga, onde Mário Soares descerrou uma lápide evocativa. Foi, aliás, no seu mandato como Presidente da Republica que, em 1988, o Parlamento português reabilitou oficialmente Aristides de Sousa Mendes, aprovando o projecto de lei da autoria do deputado Jaime Gama.

Foi ainda Mário Soares que inaugurou em 1994, na Fundação Gulbenkian, a primeira grande exposição sobre a história dos judeus em Portugal, Os Judeus entre os Descobrimentos e a Diáspora. Foi a primeira vez que o público português pôde conhecer fora do espaço académico um pouco da herança judaica em Portugal e na diáspora judaico-portuguesa. Realizada pela Associação Portuguesa de Estudos Judaicos, a exposição contou com a participação activa de Colette Avital, então embaixadora de Israel em Portugal.

Amigo de Israel e de Shimon Peres, Soares estava em visita de Estado a Israel e à Faixa de Gaza na fatídica data do assassinato de Itzhak Rabin, em Novembro de 1995. Representando Portugal nas cerimónias fúnebres, manifestou a esperança de que a morte de Rabin não comprometesse o processo de paz. Mas a evolução dos acontecimentos na região desiludiu Mário Soares, que foi de algum modo radicalizando as suas posições face à política israelita. Não deixou nunca, no entanto, de afirmar a sua amizade com Israel, com o seu povo e com os judeus de uma forma geral. Reiterou-me isso pessoalmente várias vezes no quadro de conversas à margem das reuniões da Comissão da Liberdade Religiosa, da qual assumiu a presidência, entre 2007 e 2011.

Na verdade, foi nesses últimos quatro anos que pude conhecer melhor Mário Soares. Laico e agnóstico entre crentes representando as várias religiões, considerava que era precisamente devido a esse estatuto equidistante que melhor podia servir a liberdade religiosa. “Nunca fui tocado pela graça”, repetia, mas acreditava que isso facilitaria o seu papel de presidente da Comissão, permitindo-lhe tratar e respeitar todas as religiões da mesma maneira. Na verdade, fiel a si próprio, era sobretudo o papel político da religião que mais o interessava e preocupava: face ao incremento do fundamentalismo religioso e da violência em nome de Deus, considerava que as religiões poderiam ter, deveriam ter, um papel decisivo na pacificação do mundo. Nesse sentido, incentivou conferências, colóquios e estudos. Não creio que se interessasse pelas religiões em si mesmas, mas ficou-me a convicção inabalável que se bateria sempre pela liberdade religiosa como parte da liberdade de consciência.

Esse é para mim o principal legado de Mário Soares: a defesa intransigente da liberdade como intrínseca à condição humana.

 

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