Como a apatia compromete o futuro

A falta de qualidade da política revela-se no quotidiano e torna-se particularmente pungente ao olhar a irrelevância de uma parte do trabalho parlamentar.

Temo que Portugal e a Europa estejam, há muitos anos, a perder a noção aguda das transformações que transfiguram o mundo. Esse facto explica uma parte da perda europeia de protagonismo, de influência, de poder e de competitividade. O culto de um “europeísmo” impositivo procura afirmar-se com postura de intelectualidade enquanto, na verdade, começa a tornar-se um pouco provinciano no novo mundo do séc. XXI. Centrado numa conceptualização que não tolera discussão, é também limitador da criatividade e da reinvenção dos europeus neste turbilhão global de mudanças.

As questões económicas de fundo persistem e os mitos em que tentamos acreditar são muitos. Por exemplo, desde há muitos anos se acredita, em Portugal, que os serviços devem ser a base da nossa economia, sem compreender que a maioria das economias avançadas do mundo, mesmo que com um grande sector de serviços, mantém o seu epicentro competitivo assente na indústria. E, por isso, valorizam-na. Em 2009, mesmo em pleno pico da crise, cada trabalhador industrial norte-americano auferiu, em média, cerca de 52 mil euros, mais que a média dos salários nos restantes sectores (e muitíssimo mais que os portugueses). Porque são bem remunerados, os trabalhadores são incentivados.

É um erro supor-se que o central problema económico português é o da dívida e do défice. Poderíamos anular milagrosamente o défice e a dívida já amanhã mas, apesar das exceções, a economia e a política nacionais continuariam atrasadas e desajustadas da competitividade presente e futura. A Alemanha, que paga aos seus trabalhadores em média quase quatro vezes o que os portugueses recebem, tem a indústria mais competitiva da Europa e a terceira do mundo, após a China e os Estados Unidos. A indústria norte-americana era a quarta mais competitiva do mundo há sete anos, agora ocupa o segundo lugar após a China mas poderá ultrapassar esta dentro de três anos. Na Alemanha os empregos industriais são, em média, os mais bem remunerados. Os alemães não perdem demasiado tempo a pedinchar subsídios para tudo e mais alguma coisa nem a choramingar sobre a competição dos chineses, aos quais vendem imenso e que, por exemplo, são o mercado mais lucrativo da BMW.

Em Portugal, para além de objetivos de curto prazo como o défice ou as paroquiais tricas diárias em que se deleitam os meios políticos e a maioria da imprensa, o país perde-se no tempo sem uma visão estratégica de fundo, sem uma perceção de futuro, enquanto o mundo evolui vertiginosamente. Passam os anos e as décadas e, de crise em crise, tropeção em tropeção, mexerico em mexerico, nada muda substancialmente. O contrário seria surpreendente, tendo em conta que, ao longo dos anos, os portugueses têm sido anestesiados com a ridícula ideia de que as pessoas competentes e sábias em Portugal são as que aparecem nos noticiários, convenientemente promovidas pelas máquinas partidárias e por alguma imprensa. Mas, como Durão Barroso admitiu, os melhores não estão na política. Nem nas televisões.

Não, nunca existe qualquer genuína renovação. Vão mudando grãos de farinha (pessoas) mas todos estes vão sendo retirados dos mesmos sacos. Os grãos vão mudando mas a farinha é sempre a mesma, dos mesmos círculos de interesses, das mesmas culturas de oportunismo, dos mesmos núcleos sem qualidade que segregam estratégias de tomada de poder e cumplicidades. Assim, os portugueses ouvem sempre basicamente os que emergem dos mesmos círculos. O resultado medíocre é este país que não muda, que rasteja em crescente pobreza, corrupção, perda de dignidade e falta de esperança. Deste modo o país é incapaz de se reinventar para o futuro. Afinal, em muitos casos são governos, universidades e empresas de outros países que ouvem portugueses que por cá o “sistema” tenta marginalizar.

Enquanto em Portugal se limita a economia porque, sem imaginação nem modernidade, se adota uma via errada para controlar o défice orçamental e se discutem trivialidades, o mundo acorda e vibra, mesmo nos locais mais implausíveis. Em Mogadishu, a capital da pobre e conflituosa Somália, um quarto da população vive debaixo de plásticos mas quase 27% dessa população acede à Internet pelo menos uma vez por semana. Há 15 anos existiam apenas dois milhões de telemóveis em África mas agora existem 600 milhões e mais de 300 milhões desses telemóveis têm já acesso à Internet. A empresa líder no mercado dos operadores de telemóveis em Portugal necessitou de 20 anos para conseguir um número de subscritores que equivale ao número de novos subscritores que podem surgir na Índia em 15 dias.

Na China existem já mais de 1.300 milhões de portadores de telemóveis e 720 milhões de cidadãos ligados à Internet (mais do dobro de toda a população dos países da Zona Euro juntos). A generalidade dos portugueses nunca ouviu falar de Wenzhou, mas esta é uma cidade chinesa com mais de 400 mil empresas, onde se fabrica desde o produto mais simples até às mais avançadas tecnologias existentes no mundo. Em vários países existem municípios cuja população é superior à de Portugal. Enquanto os salários têm baixado miseravelmente em Portugal, na China eles têm aumentado imenso e esse país é já o maior investidor mundial em robots industriais. Os europeus sem noção do mundo supõem que os chineses são massivamente críticos do seu regime devido ao défice de democracia, mas a realidade é que, de acordo com um grande estudo realizado (por uma respeitada entidade norte-americana), 87% dos chineses concordam com a condução do país, valor que faz inveja à maioria dos países que se consideram democracias avançadas. É idêntica a percentagem dos chineses que consideram que o futuro será ainda melhor que o presente. Mas na Europa mais de 60% dos cidadãos considera que a geração seguinte viverá pior que a atual. Em Portugal as expectativas são ainda piores.

A falta de qualidade da política revela-se no quotidiano e torna-se particularmente pungente ao olhar a irrelevância de uma parte do trabalho parlamentar, centrado muito menos nos interesses dos cidadãos do que nas lutas pequeninas entre visões pequeninas de grupos que se atacam por narcisismo e por agendas sectárias.

Lamentavelmente, os mesmos círculos que enquistaram o poder nacional controlam quase tudo. Os cidadãos, inclusive os de grande capacidade, são reféns remetidos para a condição de passivos espectadores. Assim, o país não se reinventa. Em negação das realidades e entretido com mediáticas trivialidades diárias, o país continua anestesiado. E, por isso, o nosso futuro continua sombrio, aguardando ser reinventado, em tempo útil.

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