Abraço do urso? Puro engano

Desiludam-se os que pensam que Costa só está à espera do melhor momento para acabar com a coligação e fazer-se eleger com muito mais conforto. A sua ideia é a oposta.

Reserve as terças-feiras para ler a newsletter de Teresa de Sousa e ficar a par dos temas da actualidade global.

1. Qual é a estratégia de poder do primeiro-ministro para o médio prazo? A pergunta surgiu agora, com o primeiro aniversário do Governo, porque, para muita gente, a experiência teria sempre de correr mal, dada a absoluta incompatibilidade entre os compromissos de António Costa com a Europa e os seus compromissos com o PCP e o Bloco. Hoje, já se caiu no exagero oposto. A própria oposição de direita já diz que o Governo não vai cair e que, portanto, o melhor é aceitar esse facto e tirar partido dele, em vez de esperar sentado pela sua queda. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O Governo do PS atravessa os mesmos riscos de qualquer governo europeu, dos quais a incerteza é certamente o maior. As coisas podem estar a correr bem por cá, mas somos demasiado frágeis para evitar que um qualquer acontecimento europeu ou internacional altere radicalmente a situação portuguesa. Apenas um exemplo, mesmo que extremo. Só nos últimos dias, dois colunistas tão reputados como Timothy Garton Ash e Gideon Rachman escreveram que a hipótese de Marine Le Pen ganhar as eleições francesas não deve ser totalmente descartada.

A segunda questão em debate sobre o que vai na cabeça do primeiro-ministro é igualmente interessante. Para alguns analistas, o que o líder socialista quer é apenas estar em condições de ganhar uma maioria absoluta e dispensar os outros dois elementos da coligação que sustenta o seu Governo no Parlamento. É legítimo que os partidos de governo queiram ganhar maiorias que lhes permitam pôr em prática os seus programas. Mas é não conhecer o primeiro-ministro pensar que ele só quer as alianças para chegar onde não conseguiu nas últimas eleições. António Costa acredita mesmo que estava na hora de pôr em prática uma experiência de governo que acabasse com a “bipolarização imperfeita” que dominou a política nacional nas primeiras décadas da democracia, quando o PS teve de derrubar a tentativa comunista de tomar conta do poder em Portugal, substituindo uma ditadura por outra. É uma alteração estrutural e não meramente táctica, e só o futuro dirá quais serão as suas consequências. Mas uma é imediatamente evidente. Enquanto esta solução funcionar, Portugal evita o populismo de esquerda, que afecta sobretudo os nossos parceiros do Sul.

Até agora, o primeiro-ministro conseguiu gerir as dificuldades da coligação com uma facilidade que ninguém previa, mas que também tem os seus custos, ao diluir a visão do PS para o país. Com a aprovação do Orçamento para 2017, os seus dois parceiros tiveram ganhos suficientes para apresentar às suas bases de apoio. No futuro, essa tranquilidade pode ser posta à prova de forma mais radical.

2. Na outra frente de batalha, em Bruxelas, as coisas também correram razoavelmente. Melhor agora do que com a negociação do primeiro Orçamento, apesar da má vontade política que se mantém em Berlim, com Wolfgang Schäuble a passar todos os limites. António Costa apostou em demonstrar a Bruxelas que o seu compromisso com o euro (e com a Europa) era a sério. Foi o que fez até agora. Se Portugal sair do processo de défice excessivo (o que deverá acontecer) e se cumprir as metas negociadas, terá uma maior legitimidade à mesa do Conselho Europeu para fazer valer as suas posições num debate sobre o futuro da Europa que é urgente fazer. A maior dificuldade é que, em meia dúzia de meses, viu os seus parceiros socialistas tombar estrondosamente. François Hollande vai sair de cena sem grandeza nem prestígio. Pedro Sánchez teve o mesmo destino, provando a sua incapacidade para gerir a crise política que manteve a Espanha quase um ano sem governo, depois de duas eleições. A ascensão do Podemos transformou-se numa séria ameaça à sobrevivência dos socialistas. Mas, ao mesmo tempo, a crise revelou um partido (irmão do Bloco) onde o tacticismo e o oportunismo são ainda maiores do que nos partidos democráticos tradicionais. Na Itália, Matteo Renzi, um reformista e um bulldozer que decidiu arriscar tudo para levar em frente uma das suas reformas políticas mais importantes, acaba de cair com estrondo e grande preocupação para a Europa. Costa vai ter de esperar até às eleições alemãs, em Setembro do próximo ano, para colocar sobre a mesa questões que hoje ainda são “proibidas” (como a dívida). Terá os seus parceiros à perna, criando um ruído de fundo incómodo para o PS e para o Governo. Terá de navegar à vista perante uma Europa que está a jogar o seu futuro e que, também ela, deixou em boa medida de ser previsível. Com a agitação no PSD, que não deverá acabar tão cedo, também tem de ter atenção à instabilidade que pode criar na política interna. O populismo tem a particularidade de se introduzir nos interstícios dos partidos do sistema, às vezes sem que ninguém dê conta.

3. A segunda prova que este Governo passou com distinção diz respeito à política externa e europeia, que se distingue totalmente dos seus dois parceiros de coligação. Não tergiversou um milímetro. O mérito cabe em boa medida ao ministro dos Negócios Estrangeiros, que conseguiu manter acima de qualquer discussão as grandes linhas pelas quais o PS se cose nesta frente essencial. Augusto Santos Silva não se afastou da tradicional visão euro-atlântica da Europa: privilegiar a NATO. O que não quer dizer que Portugal não apoie uma iniciativa franco-alemã com pés e cabeça que reforce a capacidade militar da Europa, num tempo em que tudo muda à sua volta, inclusivamente em Washington. Em matéria de comércio livre (sobretudo nas negociações do TTIP), o Governo manteve a mesma posição, fiel à abertura dos mercados como factor essencial de crescimento das economias europeias — muito longe de qualquer tentação proteccionista. Não é preciso lembrar que, para o PCP, a Europa é uma organização capitalista e militarista, para já não falar da NATO. É chocante ver um Congresso dos comunistas declarar o seu apoio ao regime de Damasco. Mas o PCP consegue fazer isso, recorrendo à velha regra de Cunhal que, quando alguém lhe perguntava pelo Gulag, respondia que o que interessava era Portugal. Já o Bloco é outra coisa. O modelo é a Venezuela, que não é propriamente simpático de nenhum ponto de vista: democrático, económico, social. E que hoje se transformou num total desastre. A Europa que defendem não é bem esta, mas também não é bem aquela. Ainda não conseguiram apresentar uma alternativa consistente, preferindo uma constante “guerrilha” que crie alguma tensão e alguma atenção. A sua lógica não tem nada que ver com o PCP. Querem entrar no PS para o transformar por dentro. É um sonho legítimo que outros antes deles também tiveram, mas por enquanto muito longínquo. Com o Orçamento aprovado, espera-se que a sua agenda política não seja demasiado desestabilizadora.

Mas desiludam-se os que pensam que Costa só está à espera do melhor momento para acabar com a coligação e fazer-se eleger com muito mais conforto. A sua ideia é a oposta: governar o tempo suficiente para ver o país voltar ao crescimento económico e a uma sociedade menos desigual, deixando ao mesmo tempo um sistema político assente em duas pernas de força equivalente. É por isso que António Costa quer tempo, dispensando um “abraço de urso” que elimine a concorrência.

Sugerir correcção
Ler 11 comentários