Um cristal quebrado ou quando a angústia não cabe na tormenta

Do ponto de vista psicopatológico, o que se observa em Mário de Sá-Carneiro é uma doença do Eu, com distorção da auto-imagem, dificuldade na identificação sexual, impulsividade, fantasmas de morte e ansiedade em braseiro.

Luís de Montalvor definiu Mário de Sá-Carneiro como o poeta da dispersão e do labirinto, um dos maiores da literatura portuguesa, mestre no esgrimir e na embriaguez das palavras, um dos meus diletos, que o destino arrebatou no Hotel de Nice em Paris, aos 25 anos, no sofrimento de uma morte por estricnina.

Não considerando dois poemas ocasionais de 1911 e o poema semi-futurista Manucure de 1915 (in Orpheu 2), a sua arte poética reparte-se pelos volumes Dispersão – escrito em 1913 e publicado em 1914 – e Indícios de Oiro, lavrado entre 1914 e 1916, nas bancas em 1938, em edição póstuma, por iniciativa de Fernando Pessoa.

O facto de a sua Obra ser relativamente curta no tempo permite uma leitura psíquica de maior minudência no sentido da compreensão do trajeto de vida. Um fio condutor creio evidente nas musas de malogro e de dúvida que sempre estontearam o poeta, no digladiar de emoções contraditórias entre o dar-se e o repelir-se, do mesmo modo que a obsessão da mágoa de ser um quase, um intervalo ou um intermédio, se repercutiu como ferida carnal na génese de estrutura neurótica, visível na ambivalência da luta, por vezes titânica, entre a vida e a morte.

Do ponto de vista psicopatológico, o que se observa em Mário de Sá-Carneiro é uma doença do Eu – embora sem a fratura ou a pulverização do Eu do esquizofrénico – com distorção da auto-imagem, dificuldade na identificação sexual, impulsividade, fantasmas de morte e ansiedade em braseiro.

É curioso notar que logo no primeiro poema da Dispersão, Partida, se grita ao mundo o conflito entre o Eu real e o Eu ideal, o perder-se na morte, delineada como fuga, deambulação ou balouço, com um presságio de fracasso no horizonte, onde só um talvez-amanhã existe, temas que são mote recorrente da sua poesia.

A permanência da ilusão de ruína, o pressentimento de uma qualquer catástrofe e a inquietação de um alagado pessimismo originam a incapacidade para se poder, sequer, imaginar feliz, como chaga de niilismo retratável em A Queda: “...Volteiam-me crepúsculos amarelos/ Mordidos, doentios de roxidão/ Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim...” (in Dispersão). Fecha os olhos tenebrosos de brumas, porém, mesmo nessa vida que não tem coragem de percorrer, lá estão todos os perigos: poços, minas, meandros, pauis, ravinas. Não se sente bem em Paris, detesta Barcelona, acredita sentir-se pior em Lisboa e assim fica isolado naquela “tristeza de nunca sermos dois” ou “de “ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor” (in Indícios de Oiro).

É, então, que “dormir e ancorar”, “a força de se sumir”, “viver em roxo”, passam a persegui-lo num quebranto persistentemente embruxado. Mas é a partir de A Queda que as ideias de morte adquirem um sinal suicida. Depois de ser Herói – mas de um universo em turbilhão – tudo lhe resvala para nevoeiros de sonolência e identificando o “tombar com o vencer”, decide-se, talvez sem um pestanejo: “Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso / E fico só esmagado sobre mim” (in Dispersão).

Quando mineiro de respostas atrás do Eu efervescente, Mário de Sá-Carneiro se pergunta “Onde existo que não existo em mim?” ou afirma “Corro em volta de mim sem me encontrar” (in Dispersão), quer dizer que a angústia não cabe na tormenta.

Todavia, é a partir do poema Elegia que a auto-estima chega ao fundo de todos os abismos, levando-o depois, já muito próximo do fim, no ano da morte, num só soneto, Aqueloutro (1916), a adjetivar-se miseravelmente como “dúbio, mascarado, mentiroso, incógnito, postiço, falso, covarde, bobo, presunçoso, lacaio, papa-açorda, corrido, raimoso, desleal, balofo”.

Em contraponto, na dialética do histrionismo ou da bipolaridade, quiçá, por vezes heráldica e mística, desencadeiam-se êxtases de “diadema e timbre, elmo real e cruz” e cores coloridas. O violeta, o carmim, o ruivo e o roxo ligam-se ao corpo da mulher, sempre à distância de mais um sonho e inúmeros véus pelo meio. Roxa é também a morte e a insónia, vermelha a lã do leito fofo, lilás é o tempo, mas num só repente se acredita cor-de-rosa bordado a cetim. Prata, cristal, alabastro, marfim, deixam passar a miragem de “falsos horizontes” do “Ideal”, procurado em sofreguidão e euforia, mas logo a seguir esverdinhado é o seu reflexo nos espelhos que o atraem como cisternas de desassossego.

A mulher persiste longínqua como “princesa de fantasia”, que recorda arruivada ou violácea, apesar do nunca visto; quando personalizada aparece como uma das Salomés que “às serpentes doiradas dão o sexo nu a trincar”, sobre a qual traça o manto – entre uma luz que corta – e se arqueia apunhalando em estertor, a debochada. Contudo, logo de seguida se interroga se de facto a seus pés não estará antes a sua alma esventrada em vez da maldita Salomé...

Referências explícitas à sua loucura detetam-se em Indícios de Oiro quando se proclama como “grande doido”, “varrido” e “perdulário do instante”, que no fim de pular às cambalhotas sobre um piano, esfrangalhando as partituras e tudo o mais à caqueirada – assumindo aqui um momento de agressividade para outrém – foge às gargalhadas, não pela porta, mas pelo saguão, indo para a cama, novamente, curtir “febre e revés” (in Torniquete).

Mário de Sá-Carneiro desejaria uma viagem “pela morte”, como apelador, daí o “fechar-se a bronze em salões roídos” e o “dormir-se” e não tanto a audácia de uma viagem “para a morte”, como em desesperanças afiadas clamou do “dissipar-se”, do “sepulto sob sírios” ou do “ruir-se sem Deus”. E mesmo quando proclama: “As rãs hão-de coaxar-me em roucos tons humanos” permite-se fantasiar ou determinar sobre o como será recolhido e acompanhado; a projeção de um certo ideal para além da vida terrena. Um continuum entre a vida e a morte…

Rei de um castelo de espelhos e fontes de incertezas, assim morreu Mário de Sá-Carneiro, aquele que se ditou de “grande ursa” e “esfinge gorda”, que, afinal, não sabia se era melhor finar-se de casaca ou de bibe de menino.

Prof. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

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