Cuidado com a complacência

Marcelo voltou aqui a comportar-se mal como presidente.

Quando Marcelo Rebelo de Sousa se referiu pela primeira vez a uma garantia de estabilidade política até às autárquicas “e depois das autárquicas logo se vê”, a minha primeira memória foi a de uma frase latina: excusatio non petita, accusatio manifesta – quem se desculpa sem a tal ser obrigado, denuncia-se. Ou em português mais prosaico: por que raio falou Marcelo Rebelo de Sousa das autárquicas?

A partir daqui as opiniões dividiram-se. Para uns, a mensagem era para a maioria de esquerda, vulgo “geringonça”, que assim só poderia contar com o apoio tácito de Belém até às eleições. Para outros, a mensagem era para a minoria de direita, também conhecida por “caranguejola”, que poderia ver alterada a liderança do seu maior partido após as mesmas eleições.

Na verdade, a mensagem não precisava de ser para uns nem para outros. Na sua irrequietude, Marcelo Rebelo de Sousa atirou para o ar ao fazer das autárquicas um elemento de um ciclo político que não é o seu – nem o ciclo presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa, que é de cinco anos, nem o ciclo governativo da maioria de esquerda, pensado a quatro anos. Onde vai cair a bala não é problema dele.

Talvez nem fosse necessário dizer que, ao fazê-lo, Marcelo voltou aqui a comportar-se mal como presidente. Mas a verdade é que, apesar de estar ainda no início do seu mandato, contar com uma boa vontade generalizada e fazer por namorar tanto quanto possível a atual maioria governativa, Marcelo tem cometido erros que em situações mais delicadas podem custar caro ao país.

É importante notá-lo porque Marcelo não tem praticamente tido oposição – mesmo quando propõe coisas tão graves quanto um “estado de exceção” constitucional para os direitos económicos e sociais. E é importante notá-lo porque, na medida em que ele é mau ou bom presidente, a esquerda partidária tem responsabilidade pela sua eleição. Pelas hesitações de uns e pelo taticismo de outros, os partidos da esquerda tradicional comportaram-se da sua forma tradicional e partidarizaram as eleições presidenciais, permitindo a Marcelo Rebelo de Sousa um acesso facilitado a Belém. Se mais tarde se vier a pagar um preço por isso, foi a complacência desses partidos que o permitiu.

E é importante dizê-lo agora porque os mesmos partidos, na sequência das declarações de Marcelo, vieram já proclamar à distância que também optarão pela rotina e o taticismo nas eleições autárquicas. Do ponto de vista partidário, talvez se perceba a pressa. Do ponto de vista de um país que luta para inverter as políticas dos últimos anos, não me parece que seja a resposta mais responsável ao pré-anúncio de que a estabilidade política só está garantida até às autárquicas.

Talvez fosse bom lembrar que no passado as autárquicas já tiveram consequências pesadas: foi assim que Guterres se demitiu, Barroso chegou a primeiro-ministro e depois presidente da Comissão Europeia e Santana Lopes a presidente da Câmara de Lisboa e depois primeiro-ministro.

Cuidado com a complacência, portanto. A responsabilidade de salvar o estado social e preparar o país para outra relação com a Europa e a globalização não dura apenas um par de anos.

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