Escravatura a preto e branco

A escravatura teve todas as cores. A visão maniqueísta da escravatura, assente na dicotomia negro-escravo e branco-proprietário, é profundamente redutora e parcial.

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No centro de Luanda há uma estátua colossal da rainha Njinga, que viveu entre os séculos XVI e XVII. É uma figura algo mítica, celebrada como um símbolo da luta pela liberdade e contra o imperialismo português.

Njinga era rainha do Mbundus. O Marquês de Sade, em Philosophie dans le Boudouir, caracterizou-a como “a mais cruel das mulheres”, uma rainha que matava os amantes assim que se fartava deles e, “para satisfazer a sua alma feroz, se divertia fazendo em papa mulheres que engravidassem antes dos trinta anos.” (Esta e as seguintes são traduções minhas.)

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Para melhor combater os portugueses, Njinga associou-se aos holandeses. Depois da derrota destes, celebrou com os primeiros um acordo de paz, por forma a manter-se rainha do Ndongo (o território dos Mbundus). Converteu-se ao cristianismo. Destruiu os ícones religiosos dos Mbundus, renunciou aos sacrifícios humanos e iniciou um programa vigoroso de construção de igrejas. Estas e outras histórias conta Linda Heywood num livro de 2012, Njinga of Angola: Africa’s Warrior Queen.

Durante um encontro com um governador português, Njinga recusou sentar‑se no chão para não ficar num nível inferior ao do seu interlocutor. Ordenou então a um escravo que se colocasse com as mãos e os joelhos no chão por forma a poder sentar-se nas suas costas. Este é o episódio mais popularizado de Njinga, já que simboliza a sua não-submissão ao invasor – mas faz notar também que a rainha era proprietária de escravos.

A África subsaariana dos séculos XVI e XVII era notavelmente similar à Europa feudal, com modelos económicos análogos, obrigações feudais e classes sociais, incluindo servidão e escravatura. Quando os portugueses chegaram em 1575, encontraram um mercado de escravos solidamente implantado e altamente lucrativo.

Nada de extraordinário. A escravatura é tão velha como a humanidade. Está presente nas sociedades mais antigas que nos deixaram vestígios escritos, em especial no Oriente Próximo dos milénios II e I a. C., do Egipto faraónico à Mesopotâmia. O código babilónico de Hammurabi, redigido cerca de 1750 a.C., detalha os direitos dos proprietários de escravos. O Antigo Testamento conta as histórias da escravização dos povos vencidos, e as dos pais que vendiam os filhos para a escravatura, em especial para pagar dívidas.

Thomas Piketty explica-nos em Capital et Idéologie (2019) que, “[e]ntre os séculos XV e XIX, observamos também numerosos exemplos de sociedades esclavagistas fora do quadro ocidental, nomeadamente no Reino de Congo (entre Angola, Gabão e o Congo atual), no Califado de Sokoto (no Norte da Nigéria) e no Reino de Ache (na ilha de Sumatra, atual Indonésia), em que os escravos, consoante os casos, representam entre 20% e 50% da população”.

John Coleman de Graft-Johnson relata na Enciclopédia Britânica a peregrinação do rei do Mali a Meca em 1324, “que chamou a atenção do mundo pela riqueza do seu império. Viajando a partir da capital Niani na parte superior do rio Niger, atravessando as actuais Mauritânia e Argélia antes de chegar ao Cairo, Mūsā foi acompanhado por uma impressionante caravana de 60.000 homens, incluindo um séquito de 12.000 escravos”.

Esta digressão histórica serve apenas para recordar que a escravatura foi praticada universalmente e aceite até recentemente como se de uma lei da natureza se tratasse. Aliás, os escravos libertos, se tivessem posses, compravam escravos para si próprios, sem qualquer preconceito ético.

Apenas na Inglaterra do final do século XVIII se começou seriamente a teorizar a censurabilidade moral da escravatura. Devemos aos ingleses o maior esforço efetivo para a sua abolição a um nível global: em 1787 foi criada a Society for the Abolition of Slave Trade e em 1807 a Câmara dos Comuns aprovou legislação para o efeito.

O tráfico de escravos da África subsaariana para o Magreb durou mais de 1300 anos, muito mais do que o tráfico transatlântico, que perdurou século e meio. O explorador Livingstone chamou “ferida aberta do mundo” à visão de caravanas de escravos agrilhoados a caminho do Norte de África, como nos recorda Thomas Pakenham em The Scramble for Africa (1991).

Este texto não deveria precisar de ser escrito.

A escravatura teve todas as cores. Aliás, em inglês, o termo para “escravo” (“slave”) tem origem na palavra para “eslavo” (“slav”, que por sua vez deriva do latim “sclavus”), precisamente porque os eslavos foram sistematicamente capturados para a escravidão desde os tempos do Império Romano do Ocidente até à Baixa Idade Média.

A visão maniqueísta da escravatura, assente na dicotomia negro‑escravo e branco‑proprietário, é profundamente redutora e parcial. É uma perspetiva Ocidental moderna, que a influência cultural norte‑americana ajudou a propagar.

As ideias de reparações sobre atos de um passado mais ou menos distante, assim como os pedidos de desculpa, assentam em regra num misto de ignorância e ingenuidade. São, além disso, uma manifestação de insuportável sobranceria, nossa sobre os antigos, como se tivéssemos atingido a perfeição moral absoluta e no futuro não pudéssemos ser também julgados pelo que fazemos hoje e reputamos aceitável.

O investigador Rob Henderson defende que estas posições têm origem na necessidade de as elites, em especial as universitárias, terem uma sensação de superioridade moral sobre as “classes inferiores”, de obterem um estatuto social em troca de pouco esforço – já que os bens de luxo já não são suficientemente distintivos, as elites precisam de “crenças de luxo”. Foi nesta armadilha que caiu Marcelo Rebelo de Sousa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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