Barbie ou manifesto feminista

O que poderiam críticos de cinema (homens) acrescentar acerca da opressão das mulheres, da qual são meros espectadores?

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Megafone P3: Barbie ou manifesto feminista Reuters/MAJA SMIEJKOWSKA
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Ligeiramente atrasada, apenas consegui ir ver o novo filme de Greta Gerwig, Barbie, não no dia de estreia, mas na última sessão da noite de 24 de Julho. Assim sendo, tinha já recebido um ligeiro cheirinho do que estaria aí por vir.

Já se começava a desvendar na minha cabeça que o novo filme sobre a Barbie não era estritamente sobre a boneca que habita a nossa imaginação colectiva, mas sim sobre as ideias ancoradas a essa boneca. Sem o jargão da “emancipação”, “patriarcado”, “feminismo”, “empoderamento”, a boneca nunca teria passado de um objecto físico com o qual brincávamos para um conceito. Greta Gerwig propõe-se a iluminar-nos esse caminho, e a traçar indelevelmente o que significa ser Barbie.

Acabo por discordar de muitas das críticas feitas ao filme, sentindo que não estão realmente a descortinar a teleologia do filme. Vou assumir o papel de feminista que se questiona: porque é que são os críticos de cinema, homens, que atribuem uma classificação a um filme sobre a experiência das mulheres, experiência sobre a qual, na vida real, conseguem, no máximo, assumir um papel de meros espectadores, mesmo que solidários das dificuldades que as mulheres passam na sociedade machista? Honestamente, considero que os homens são desprovidos dessa experiência, e, portanto, de capacidade para compreenderem realmente o que significa a Barbie.

Por um lado, vejo as críticas masculinas reaccionárias, de se tratar de um filme com um discurso woke e que quer destruir a masculinidade. Do outro lado, vejo homens progressistas que se desiludiram com a forma superficial, típica do feminismo liberal, com que é abordada a questão, sendo um particular monólogo de uma personagem que falha em honestidade sobre como libertar as mulheres das suas correntes.

Todas estas críticas parecem perder o fio à meada sobre a questão fulcral do filme. A questão do quanto significa a Barbie para cada uma de nós para mim, para a amiga que me acompanhou e para a menina de dez anos que estava sentada ao meu lado na sala de cinema. A Barbie, nos termos da Greta Gerwig, recusa-se a seguir os cânones do cinema mainstream, que impinge uma doutrina feminista cansada: o feminismo é sermos todos iguais, palavras vazias e coniventes com o mesmo sistema que nos oprime.

Mas também se recusa a seguir os cânones da contracorrente, que obriga as mulheres a tornarem-se os mártires da sua própria condição, condenando-as a carregarem uma cruz. Essa cruz igualmente as oprime: por construírem uma identidade contracorrente, necessariamente ainda vivem sob a linguagem que o status quo criou (a dominação de um género pelo outro, a cultura da violência de género), ostracizadas do patriarcado, mas dele igualmente submissas.

Há uma terceira forma. E por isso este filme deixa a sensação de algo pouco visto, precisamente porque faz algo que, aparentemente simples, é inconcebível: descrever a feminilidade através do female gaze (olhar feminino, em português). A própria plateia está programada para viver o clichê do male gaze (olhar masculino, em português), eu estava a contar com uma conclusão de felizes para sempre; e este olhar masculino é retratado (spoiler, cuidado!) pela personagem do CEO da Mattel que, chocado, diz: a Barbie não fica apaixonada pelo Ken? Não.

A Barbie decide ser humana, aceitando que, com essa condição, venham também as adversidades da vida real, mas também a felicidade de sentir conexões reais. Acima de tudo, a primeira coisa que faz, enquanto mulher, é ir ao ginecologista. E (spoiler, cuidado!) acaba por nunca beijar o Ken. E se calhar é mesmo sobre isso.

Não conseguimos uma revolução feminista porque não temos uma linguagem que defina a sociedade que queremos criar. Surpreendentemente, a sensação com que fiquei ao sair do filme foi que as mulheres lá dentro estiveram a um passo um pouco maior de lá chegarem. Ser mulher é motivo de orgulho e de esperança, de ditarmos as nossas próprias condições.

Talvez tenha extrapolado em larga escala a intenção que alguma pessoa daria a um singelo filme sobre uma boneca de brincar. Mas, na verdade, serviu mais como uma espécie de imperativo interior, de encontrar um meio através do qual passar a mensagem entre as minhas companheiras. Barbie is everything. And so are we ("A Barbie é tudo. E nós também").

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