Abusos e violência sexual: criar uma cultura de Direitos da Criança em Portugal

O relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa constitui-se como um contributo essencial para a proteção das crianças em Portugal.

Cultura é o que fica depois de tudo esquecer. Conhecemos, esquecemos; aprendemos, esquecemos; dizemos, esquecemos; sofremos, esquecemos? Fica o que nos marcou, com ou sem sentido.

Em 2019, na sua última avaliação sobre a implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança em Portugal, o Comité da ONU para os Direitos da Criança (CDC) destacou a ausência de dados sobre o abuso sexual de crianças em Portugal, a insuficiência de recursos que permitissem a identificação e investigação efetiva, o baixo nível de sensibilização e a ausência de procedimentos definidos para a resposta profissional ao abuso sexual de crianças. Esquecemos?

Em 2023, o relatório publicado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa constitui-se como um contributo essencial para a proteção das crianças em Portugal. “Dar voz ao silêncio” deve ser encarado como um ponto de partida e não de chegada. Elencando recomendações à Igreja, ao Estado e à Sociedade, verificamos que estas estão totalmente alinhadas com as do CDC em 2019 e, concretamente, com a preocupação de criação de “uma outra cultura” relativa aos abusos sexuais de crianças centrada na vítima criança e não na instituição traída. Esquecemos?

A UNICEF estima que uma em cada oito crianças no mundo (12,7%) foi alvo de abuso sexual antes de completar os 18 anos. Portugal, que ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, e por ter de cumprir a Diretiva n.º 2011/93-EU, ainda não transposta, tem a obrigação de garantir que os mecanismos de proteção existem e são eficazes. O pilar, garante de direitos, de proteção, é o Estado. Esquecemos?

Quatro anos volvidos, e um relatório independente depois, torna-se evidente que, como país e sociedade, Portugal não possui uma cultura de valorização dos direitos da criança. Uma cultura estruturada de valorização de direitos, com profissionais em número e competências adequados, com mecanismos de prevenção, de denúncia e apoio efetivo tanto no mundo físico, como no mundo digital.

Para que não esqueçamos o que é preciso fazer para uma cultura real de direitos de criança deixo cinco linhas de ação, que no entender da UNICEF são críticas:

Primeiro, realizar um estudo nacional, representativo da sociedade portuguesa, centrado na incidência atual do fenómeno dos abusos. As instituições educativas, desportivas, recreativas, de acolhimento – todas as que lidam com crianças – devem encarar a sua participação neste estudo como uma oportunidade única de robustecerem a sua prática e de contribuírem para uma nova cultura de tolerância zero, centrada na criança e nos seus direitos. O Estado deve promover este estudo dando-lhe prioridade e assumindo esse compromisso de forma pública e visível;

Segundo, o Estado deve conferir prioridade absoluta à criação de um referencial de qualificações e de formação obrigatória para todos os profissionais que lidam diretamente com crianças;

Terceiro, há que sensibilizar a sociedade para a importância da valorização dos direitos das crianças, que tem de estar acima de quaisquer interesses individuais ou institucionais. Saber reconhecer o abuso sexual, denunciá-lo e agir independentemente da relevância, dimensão ou poder das pessoas e/ou das instituições em causa. Saber proteger;

Quarto, a resposta ao apoio às vítimas tem que ser imediata e empenhada, tem que estar prevista de forma clara, tem que estar disponível no momento da criança, depois é tarde demais;

Quinto, o Estado deve dar o exemplo e um sinal claro do seu compromisso na criação de uma verdadeira cultura de valorização de direitos da criança. Assim e retomando uma das mais antigas recomendações que o Comité dos Direitos da Criança e a UNICEF fazem a Portugal para que o Governo nomeie um dos seus membros atribuindo-lhe a tutela específica dos direitos da criança. É preciso um alto responsável político com este pelouro, que possa trabalhar transversalmente com toda a administração pública e com a sociedade civil, para responder às crianças e às suas necessidades no seu tempo – que é hoje – e corresponder às expetativas sociais do momento que enfrentamos.

Este é o tempo de agir, não podemos esquecer.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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