A medicina interna e os que ficam de fora

Quando vivemos uma época em que ser internista deixa de ser atractivo para um jovem médico, temos de perceber que estamos perante um sintoma de doença grave.

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Daniel Rocha

Uma boa parte da minha família e amigos tem dificuldade em descrever o que faço no dia-a-dia. Não como médico, mas como médico de Medicina Interna. Uma especialidade que não deriva o seu nome de um órgão tem muito mais dificuldade em apresentar-se a todos os que trabalham fora do hospital.

Ironicamente, quando conceptualizada a ideia do “ser médico”, ninguém está mais próximo disso que a Medicina Interna. Desde cedo, nas faculdades, se aprende que ser internista é um símbolo da vida hospitalar, do cuidar do doente, do dominar a investigação, o diagnóstico e a terapêutica. De gestão de internamentos e urgências, do doente grave ao doente raro. Da emergência à consulta.

É por aqui que se começa a explicar porque é que é tão grave sobrarem vagas de formação específica de Medicina Interna. Pelo segundo ano consecutivo, demonstrando tendência e não capricho. Porque é que é tão grave que jovens médicos, que sabem bem o valor e a necessidade de existência de uma Medicina Interna forte no seu hospital, escolherem não ter especialidade em detrimento de seguir esta.

A Medicina Interna é a cola que mantém todo o hospital a funcionar. É o tecido conjuntivo das especialidades, lida com os diagnósticos graves do doente urgente e trata a maioria das doenças a nível de internamento. De tal forma, que em muitos hospitais os internamentos de outras especialidades médicas não existem de todo, ficando os doentes ao cargo da Medicina Interna com consultadoria das restantes equipas.

Ser internista é, historicamente, uma especialidade de trabalho e dedicação hospitalar. Pautada de aprendizagem contínua e tutoria, de muitas horas de estudo e investigação, recompensadas pelo diagnóstico acertado, a capacidade de síntese, a resolução de problemas. De, finalmente, se compreender o doente como um todo, em vez de uma soma de órgãos, de se ler o hospital-instituição como mais que uma soma de serviços. Construir uma malha que se deveria manter apertada, unida e dedicada fazia parte do papel clássico da Medicina Interna. Hoje, essa malha está esticada ao limite, dispersando tarefas, aumentando responsabilidades, perdendo meios técnicos e humanos, utilizada cada vez mais, não para unir o hospital — mas para segurar as pontas.

Mais de 150 jovens médicos, acabados de sair da faculdade, e com apenas um ano de experiência no mundo real, decidiram que era preferível não entrar numa carreira, não fazerem parte de um plano formativo sólido, desligarem-se do mundo hospitalar. Quando, até há pouco tempo, o que havia era medo de não conseguirem vaga de especialidade, fosse ela qual fosse.

Hoje, escolhem não ingressar por saber que não serão parte de uma rede estável e durável, mas de uma manta de retalhos onde seriam mais um ponto sob tensão, prestes a quebrar. E a culpa, ao contrário do que se dirá por aí, não é deles nem das suas escolhas.

O aproveitamento político vai ser rápido e óbvio – se sobram vagas, faltam médicos. Logo, a solução apresentada será a de abrir faculdades, vendendo ilusões. Não se enganem. Nem as notas de acesso vão baixar, nem a qualidade do serviço público vai subir. Mesmo com mais 500 candidatos, as vagas por preencher vão continuar a ser realidade. Não lhe chamem corporativismo, não nesta especialidade, nem noutras que são feitas à base de trabalho duro onde toda a ajuda é bem vinda.

O problema da Medicina Interna, ou da Medicina Geral e Familiar, não é a falta de candidatos ou de vocação. É a falta de visão e estratégia para as especialidades basilares do sistema, completamente desestruturadas e defraudadas de esperança.

Nos cuidados de saúde primários, o médico foi transformado num burocrata de saúde, onde é mais importante apresentar indicadores informáticos do que auscultar um doente. Nos hospitais, ser internista significa cada vez mais substituir qualidade por quantidade, experienciar em primeira mão a falta de condições físicas e humanas nas urgências, observar a degradação da componente técnica e humana, compactuando com situações onde ninguém suportaria ver os seus familiares.

É estar aberto a horas extra sim-ou-sim, mal remuneradas e com baixas condições de aprendizagem e crescimento associadas. Significa viver em cidades onde o custo de vida não se coaduna com o salário base e com as necessidades de investimento científico obrigatório, onde se contam cursos, congressos e artigos, feitos em tempo pessoal, extra-horário e exigidos legalmente para fazer a especialidade.

Portanto, quando vos vierem dizer que o que falta neste país são médicos, ou que os tarefeiros são mercenários que muito devem ao país, pensem duas vezes em acreditar na narrativa. A maior parte teve, simplesmente, de tomar uma decisão realista entre aquilo que o mundo real lhe ofereceu e uma forma mais digna de viver e trabalhar. Se queremos atirar para o buraco mais médicos, tentando combater a falta de qualidade e condições com números em vez de reformas, temos que pensar em que tipo de país nos estamos a tornar e no tipo de serviço que vamos oferecer à população em poucos anos.

O estado da Medicina Interna é e será, sempre, o espelho mais próximo da realidade hospitalar e do estado de saúde do país. Quando vivemos uma época em que ser internista deixa de ser atractivo para um jovem médico, temos de perceber que estamos perante um sintoma de doença grave. Uma que urge investigar, diagnosticar e tratar. De forma competente e eficiente, sem populismo e sem maquilhagem propagandística.

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